Tipos textuais: a descrição

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O tema deste artigo é modos de organizar o discurso. Tratarei, portanto, de tipos textuais. Em post anterior, comentei a diferença entre gêneros e tipos textuais e chamei a atenção sobre macroações discursivas, narrar, descrever, argumentar e expor, que configuram quatro tipos de texto: narrativo, descritivo, argumentativo e expositivo (clique aqui). Acrescentei ainda que estudiosos do texto fazem ainda referência aos textos injuntivo e conversacional. Como todo texto se enquadra num gênero, há gêneros narrativos, descritivos, argumentativos e expositivos. Neste post, tratarei especificamente do texto descritivo. No próximo, o assunto será o texto narrativo.

O texto descritivo

Descrever é retratar. A descrição é, pois, o retrato de alguém (descrição de pessoas) ou de algo (descrição de coisas, de ambientes, de lugares, etc.). Ao contrário da narrativa, que apresenta transformações de sujeitos no tempo, na descrição não há temporalidade, ou seja, não há um antes nem um depois. O que se descreve é congelado no tempo e fixado na descrição. A diferença entre narração e descrição fica clara se usarmos a seguinte analogia: a narração se assemelha a um filme; a descrição a uma fotografia.

Ao compor a descrição de alguém ou de algo, captamos aquilo que se descreve em seu todo e em suas partes constituintes a partir de uma determinada perspectiva (de perto, de longe, de cima, de baixo, etc.) e transmitimos ao leitor as impressões sensoriais do que se descreve: seu aspecto, tamanho, formas, cores, cheiros, sons, gostos, etc., ou seja, na descrição predomina o sensorial, por isso é sempre um texto figurativo (ver post em que falo de textos temáticos e figurativos, clicando aqui).

Uma boa descrição deve se caracterizar pela individuação, isto é, deve-se descrever de modo que o que se descreve se apresente ao leitor como único, particular e que, portanto, se destaque de outros de uma mesma espécie. Se você vai descrever uma casa, por exemplo, é pouco relevante dizer que ela tem porta, janelas e telhado, pois esses traços não distinguem a casa das demais. Afinal, todas as casas possuem porta, janelas e telhado. Ao contrário, a ausência de um desses elementos da casa, serve como um traço descritivo. Dizer que a casa não tinha porta, por exemplo, distingue-a das demais. Veja-se a propósito a descrição que se faz na conhecida canção cuja letra de Vinícius de Moraes diz:

Era uma casa muito engraçada
Não tinha teto, não tinha nada
Ninguém podia entra nela não
Porque na casa não tinha chão

Dependendo da maneira como quem descreve apresenta para o leitor o que se descreve, a descrição pode ser objetiva ou subjetiva, cada uma adequada a um propósito comunicativo.

Nas descrições objetivas, procura-se transmitir ao leitor um retrato o mais fiel possível do que se descreve. Objetividade deve ser entendida como ausência de avaliações pessoais. Evidentemente, sempre haverá alguma subjetividade na descrição. A escolha do ponto de vista é pessoal, portanto, de natureza subjetiva. O que quero dizer é que, nas descrições objetivas, deve-se procurar ser o mais fiel possível àquilo que se descreve. Descrições objetivas são aquelas que buscam a precisão e se caracterizam pela maior fidelidade possível ao que se descreve.

A técnica do retrato falado usada pela polícia para descobrir criminosos e as descrições de pessoas e animais desaparecidos funcionam bem quando são bastante objetivas. Pouco adianta, na descrição de um cão desaparecido, dizer que ele é bonito. Isso é uma avaliação pessoal. Para que a descrição cumpra sua finalidade, é necessário que se transmita ao leitor características que não dependam de avaliações pessoais, tais como cor dos pelos, tamanho, raça, sexo, algum sinal característico. Descrições objetivas são frequentes em textos científicos e em manuais de produtos. Veja a propósito um trecho de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade em que ele reproduz um anúncio em que se procura recuperar um animal perdido.

À procura de uma besta

A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento. 

Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações. 

Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado. 

Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899.

(a) João Alves Júnior.

(ANDRADE, 1973. p. 954)

Quanto ao gênero, o texto se enquadra no que se denomina anúncio e seu meio de circulação costuma ocorrer por publicações na imprensa, na internet, ou em cartazes afixados em lugares públicos. Os gêneros são formas relativamente estáveis de enunciados. Hoje, um anúncio com o mesmo propósito publicado em uma rede social, apresentaria diferenças em relação ao anúncio de João Alves, que é de 1899.

Quanto ao tipo de texto, esse anúncio é descritivo. Observe que o autor procurou apresentar um retrato verbal minucioso do animal desaparecido, o que facilita muito a sua identificação.

Nas descrições subjetivas, o enunciador não se restringe a fazer um retrato objetivo do que descreve; pelo contrário, por meio de adjetivos e expressões avaliativas, transmite ao leitor também as impressões que o ser ou objeto descrito lhe provoca. Esse tipo de descrição é mais comum no discurso literário, embora possa aparecer no discurso publicitário com finalidades persuasivas, isto é, para convencer o leitor que o produto que se descreve e se quer vender tem qualidades que o distinguem dos demais. No discurso literário, as descrições subjetivas são usadas para criar um clima de mistério, de terror, de suspense, entre outros, e não aparecem como discursos autônomos, mas como sequências que se intercalam em textos narrativos com a finalidade de descrever personagens e ambientes.

Do ponto de vista gramatical, nas descrições predominam verbos de ligação (ser, estar, parecer, etc.), que formam predicados nominais, relacionando seres, representados por substantivos, a seus atributos, expressos por adjetivos. Como não há temporalidade, tampouco relações de causa e efeito, as orações relacionam-se em geral por coordenação, isto é, não há dependência sintática entre as orações que formam os períodos. O fragmento de texto que segue ilustra isso.

O cabelo é ruivo, bem ruivo, com cachos pequenos, e o rosto é pálido, alongado, com feições regulares, atraentes, e umas suíças pequenas, um tanto estranhas, tão ruivas quanto o cabelo. As sobrancelhas são, de algum modo, mais escuras; são bem arqueadas e parecem capazes de se mexer bastante. Os olhos são penetrantes, estranhos – terríveis; mas só sei dizer que são um tanto pequenos e muito fixos. A boca é larga, os lábios são finos e tirando as suíças pequenas o rosto é bem escanhoado. De certo modo, ele me dá a impressão de ser um ator.

(JAMES, 2011, p. 45.)

Trata-se de um sequência descritiva do livro A outra volta do parafuso, de Henry James, que conta as experiências de uma governanta encarregada de cuidar de duas crianças. A história é narrada pela própria governanta, que vê na casa em que trabalha a presença de pessoas que já morreram. O trecho acima é uma descrição que a Sra. Grose, uma funcionária da casa, faz à protagonista de um antigo funcionário já morto e que aparecera para a governanta.

Observe que não há temporalidade (não há um antes nem um depois) e que a adjetivação é o recurso utilizado para apresentar as características do antigo funcionário. Tais adjetivos funcionam como núcleos de predicados nominais, isto é, constituídos por verbos de ligação e predicativo.

“O cabelo é ruivo, bem ruivo […]”

“[…] o rosto é pálido, alongado […]”

“As sobrancelhas são […] mais escuras; são bem arqueadas […]”

“Os olhos são penetrantes, estranhos – terríveis […]”

“[…] [os olhos] são um tanto pequenos e muito fixos.”

“A boca é larga, os lábios são finos […]”

“[…] o rosto é bem escanhoado […]”

A seguir, transcrevo trechos do livro Lincoln no limbo, de George Saunders, em que personagens diferentes descrevem o presidente americano Abraham Lincoln.

  1. Nariz pesado e algo romano, faces estreitas e encovadas, pele bronzeada, lábios grossos, boca larga.
  2. Seus olhos cinza-escuros, límpidos, muito expressivos, variando conforme o estado de espírito.
  3. Seus olhos eram claros, penetrantes, com uma luminosa coloração cinzenta.
  4. Olhos entre o cinza e o castanho enterrados sob grossas sobrancelhas e circundados por rugas profundas e escuras.
  5. Seus olhos eram de um cinza-azulado – embora sempre escurecidos pelas pálpebras superiores, anormalmente pesadas.
  6. Bondosos olhos azuis, semiencobertos pelas pálpebras.
  7. Eu diria que os olhos do presidente Lincoln eram de um azul cinzento-azulado ou de um azul-acinzentado, porque o azul, sem ser dominante era sempre visível.

São sete descrições de uma mesma pessoa, feitas por seis pessoas diferentes. Todas se concentram na descrição do rosto do presidente. Excetuando a primeira, que apresenta uma visão geral do rosto, as demais se centram na descrição dos olhos, o que significa que esse é o traço que mais chamou a atenção daqueles que descreveram Lincoln.

Observe ainda que não se trata de descrições objetivas. Mesmo a primeira apresenta caráter avaliativo. Se os adjetivos estreitas, encovadas, bronzeada, grossos e larga tendem a efeitos de objetividade, o mesmo não ocorre com o adjetivo pesado. Quanto às demais, são marcadas por extrema subjetividade. Observe os adjetivos: expressivos, penetrantes, pesadas e bondosos.

Destaco que nas descrições há o que denominamos aspectualização do que se descreve, isto é, há um todo a ser descrito, tema da descrição, do qual se apresentam seus aspectos. É comum que um aspecto se sobreleve aos demais, por isso é comum as descrições se valerem da metonímia, uma figura de linguagem em que a parte representa o todo, em um procedimento similar ao do cinema quando a câmara faz um close em algum detalhe (sobre metonímia, há pelo menos três posts no blogue, comece, clicando aqui). No caso das descrições de Lincoln, podemos observar que os olhos são usados como forma de mostrar o todo.

Quando falei neste blogue de dialogismo, ressaltei que se trata de uma propriedade dos discursos em geral, na medida em que todo discurso mantém uma relação de concordância ou de refutação com discursos que o precederam. Nesse caso, trata-se de dialogismo em sentido amplo. É a heterogeneidade constitutiva de que já tratei no blogue.

O termo dialogismo também é usado para destacar que a linguagem humana é marcada pelo diálogo, ou seja, o eu que fala sempre se dirige a um tu. Trata-se de dialogismo em sentido estrito.

Se quem toma a palavra sempre a dirige a alguém, não há discurso neutro. Mesmo aqueles que buscam a objetividade, como ocorre no discurso científico, manifestam um ponto de vista. Isso pode ser notado na seleção lexical, por exemplo. Ao escolher uma determinada palavra e não outra, o enunciador deixa transparecer uma avaliação, por isso, em vez de dizer, discursos objetivos e subjetivos, é recomendável afirmar que há discursos cujo efeito de sentido é de objetividade ou de subjetividade.

No texto descritivo, temos a manifestação de traços sensoriais. Nos exemplos apresentados, descreve-se o que é captado pela visão, mas notem que o modo como os enunciadores veem o rosto do presidente difere de um para o outro. Observe como a cor dos olhos varia de uma descrição para outra.

Descrição 2: olhos cinza-escuros.

Descrição 3:  olhos claros, com coloração cinzenta. 

Descrição 4: olhos entre o cinza e o castanho.

Descrição 5: olhos eram de um cinza-azulado.

Descrição 6: olhos azuis.

Descrição 7: eram de um cinzento-azulado ou de um azul-acinzentado.

Com exceção da descrição 6, todas fazem referência a tons de cinza, que variam. A cor azul só aparece nas descrições 5, 6 e 7. O castanho apenas na 4. Mesmo a descrição 7, em que o enunciador procurou passar de forma mais objetiva a cor dos olhos do presidente, inclusive tentando justificar seu ponto de vista, é marcada pela subjetividade. A única em que há marca linguística da pessoa que fala no texto (eu) que se refere a um verbo que não exprime certeza: diria.

Como afirmei, nas descrições há forte presença de adjetivos.

Gostaria, para encerrar, de dizer algumas palavras sobre adjetivos designativos de cor formados por mais de uma palavra (adjetivos compostos).

Nesse tipo de adjetivo, é praxe usarmos como primeiro elemento a cor dominante. Assim algo verde-azulado é verde com tons de azul; ao contrário, em azul-esverdeado o azul é com tons de verde. O uso de adjetivos compostos indicativos de cor nas descrições é recurso muito útil na medida em que uma mesma cor apresenta diversas tonalidades. Dizer apenas que algo é azul não é tão preciso como dizer azul-marinho, azul-celeste, azul-claro, azul-escuro ou azul-cobalto.

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REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Anúncio de João Alves. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973, p. 954-955.

JAMES, Henry. A outra volta do parafuso. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SAUNDERS, George. Lincoln no limbo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 228-229.


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