Heterogeneidade: tipos de discurso

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O discurso não é homogêneo já que é atravessado por outros. A unicidade do discurso é apenas aparente; pois, na cadeia discursiva, emergem outras vozes que nela se inscrevem. Podemos, portanto, afirmar que todo discurso é heterogêneo. A heterogeneidade pode ser constitutiva ou mostrada.

Heterogeneidade constitutiva

A heterogeneidade constitutiva, também chamada de dialogismo, revela uma propriedade essencial da linguagem humana, que é o fato de todo discurso se construir a partir de outros discursos. Esse tipo de heterogeneidade não está explicitado no texto, portanto, não é localizável na cadeia do discurso. Aquilo que o texto afirma se constrói a partir de um ponto de vista que refuta ou adere. Em um outro post, tratarei desse assunto com detalhes.

Heterogeneidade mostrada

A heterogeneidade mostrada diz respeito a outras vozes manifestadas e presentes no texto, portanto localizáveis na cadeia do discurso. Por exemplo: em uma reportagem jornalística, o autor traz à tona o que outros disseram, muitas vezes citando-os textualmente. Em textos acadêmicos, costumamos trazer falas de outros que corroboram o nosso ponto de vista. A letra da canção Monte castelo, de Renato Russo, começa assim:

“Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria”

Nesses primeiros versos, é possível localizar na cadeia do discurso uma citação bíblica, colhida da epístola de São Paulo aos Coríntios, que no versículo 13 diz: “Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, e não tivesse o amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine”.

Na letra dessa canção, Renato Russo reproduz ainda versos de um conhecido soneto de Camões: “O amor é um fogo que arde sem se ver / É ferida que dói e não se sente / É um contentamento descontente / É dor que desatina sem doer”.

Em suma: no texto de Renato Russo, é possível identificar outras vozes, como a do discurso bíblico e a do poeta português Luís de Camões.

A heterogeneidade mostrada pode ser de dois tipos:

  •  marcada;
  • não marcada.
Heterogeneidade marcada

Dizemos que a heterogeneidade é marcada quando há explicitação da voz do outro na cadeia do discurso. As vozes estão delimitadas, de sorte que o leitor pode identificar quem disse uma coisa e quem disse outra, pois há dois atos enunciativos. Os exemplos mais comuns de heterogeneidade mostrada são o discurso direto e o discurso indireto.

Discurso direto

Um dia Mamãe disse ao meu Pai na hora, na hora do almoço:

— Hoje me trouxeram um caso difícil… Um rapaz viciado. Você vai empregá-lo. Seja tudo pelo amor de Deus. Ele me veio pedir auxílio… e eu tenho que ajudar. O pobre chorou tanto, implorou… contando a sua miséria. É um desgraçado.

Neste trecho do conto A moralista, de Dinah Silveira de Queiroz, identificam-se duas vozes: a do narrador, que conta os fatos em 1a. pessoa (“Um dia Mamãe disse ao meu Pai na hora, na hora do almoço”) e a da mãe do narrador (o trecho que segue à fala do narrador, indicado pelo travessão).

Observe que o narrador delega a voz à personagem, que se expressa com suas próprias palavras. A voz da personagem é introduzida por um verbo de elocução (disse). A fala do narrador e a da personagem estão bem separadas, por meio de sinais como os dois-pontos, seguidos de parágrafo e travessão.

Nesse caso, temos discurso direto. A fala da personagem mãe é mostrada no texto e é identificada. Podemos distinguir claramente quem diz uma coisa e quem diz outra.

O discurso direto é facilmente reconhecível por marcas gráficas que estabelecem os limites entre o discurso citante e o discurso citado. Os recursos gráficos mais usados são as aspas e o travessão, simples ou duplo.

O discurso direto, por instalar outra voz que toma a palavra, constituindo outro ato enunciativo, produz um efeito de sentido de realidade. Ao reproduzir a voz do outro, o discurso direto simula a enunciação – parece que, naquele momento, quem diz o faz com suas próprias palavras.

Discurso indireto

Observe:

Gil diz que ela não se abre comigo porque sabe que minha inveja é maior que meu amor.

Nesse trecho do conto Correspondência completa, de Ana Cristina Cesar, também narrado em 1a. pessoa, distinguem-se duas vozes marcadas no texto: a do narrador e a da personagem (Gil), introduzida por um verbo de elocução (diz).

Ao contrário do discurso direto, a personagem não se expressa por suas próprias palavras. Tomamos conhecimento do que ela disse, mas indiretamente, ou seja, o narrador exprime com suas próprias palavras o conteúdo da fala da personagem, portanto, temos discurso indireto.

No discurso indireto, a voz do outro também é introduzida por um verbo de elocução seguido da conjunção que, introdutora de uma oração subordinada que contém o conteúdo da fala do outro em 3a. pessoa.

Além das marcas formais que distinguem o discurso direto do indireto, é fundamental perceber que no discurso direto temos dois atos enunciativos, enquanto no discurso indireto há apenas um. Isso tem como consequência que a variedade de linguagem empregada no discurso direto é a variedade daquele cuja fala é reproduzida, enquanto no discurso indireto a variedade linguística usada é a do autor do texto. Outra decorrência de se tratarem de dois atos enunciativos é que, no discurso direto, as indicações de tempo e espaço são feitas em função do contexto daquele cuja fala é reproduzida, enquanto no indireto são feitas em função do contexto do autor.

O discurso direto e o discurso indireto não são exclusivos de textos ficcionais, podendo ser observados também em textos jornalísticos, científicos, filosóficos etc.

Heterogeneidade não marcada

Na heterogeneidade marcada há uma ruptura na cadeia do discurso que nos permite isolar a voz do outro, ou seja, além de estar mostrada no texto, há marcas que a identificam, como as aspas, o travessão, a presença do verbo de elocução.

Na heterogeneidade não marcada não há ruptura na cadeia do discurso, de sorte que diferentes vozes se mesclam sem que haja identificação formal de quem diz o quê. Por essa característica, a heterogeneidade não marcada se aproxima da heterogeneidade constitutiva. Dentre as formas de heterogeneidade não marcada. Neste post, tratarei apenas do discurso indireto livre.

Discurso indireto livre

O discurso indireto livre é comum no discurso literário e em textos narrativos e, como o próprio nome indica, trata-se de um discurso híbrido. Como no discurso direto, a fala da personagem é reproduzida da forma como ela disse, mas não há nenhuma indicação formal de que se trata da voz da personagem e não da do narrador. Não há verbo de elocução, nem sinais gráficos como aspas ou travessão. Não ocorre, pois, nenhum vínculo sintático entre a fala de um e de outro. Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, na obra Dicionário de narratologia, assinalam que “o discurso indireto livre, ao proporcionar uma confluência de vozes, marca sempre, de forma mais ou menos difusa, a atitude do narrador face às personagens, atitude essa que pode ser de distanciamento irônico ou satírico, ou de acentuada empatia”. Veja um exemplo:

O menino enfiou as mãos no bolso e enterrou o queixo no peito. Lançou à mãe um olhar sombrio. Por que é que não entravam logo? Tinham corrido feito dois loucos e agora aquela calma, espera. Esperar o quê, pô?!

— É que a gente já está atrasado, mãe.

— Vá ali no balcão comprar chocolate – ordenou ela, entregando-lhe uma nota nervosamente amarfanhada.

Ele atravessou a sala num andar arrastado, chutando as pontas de cigarro pela frente. Ora, chocolate. Quem é que quer chocolate? E se o enredo fosse de crime, quem é que ia entender chegando assim começado? Sem nenhum entusiasmo pediu um tablete de chocolate.

Vacilou um instante e pediu em seguida um tubo de drágeas de limão e um pacote de caramelos de leite, pronto, também gastava à beça. Recebeu o troco de cara fechada. Ouviu então os passos apressados da mãe que lhe estendeu com impaciência:

— Vamos, meu bem, vamos entrar.

Num salto, o menino pôs-se ao lado dela. Apertou-lhe a mão freneticamente.

Trata-se de um trecho do conto O menino, de Lygia Fagundes Telles. Nele, podemos identificar as seguintes vozes:

a) do narrador que relata os fatos em 3a. pessoa, como no trecho que abre o conto: “O menino enfiou as mãos no bolso e enterrou o queixo no peito. Lançou à mãe um olhar sombrio”.

b) da personagem mãe, expressa em discurso direto, em “– Vá ali no balcão com- prar chocolate” e “– Vamos, meu bem, vamos entrar”.

c) da personagem menino (o filho), em discurso direto: “– É que a gente já está atrasado, mãe”.

Mas essa não é a única vez que a voz do menino emerge no texto. Embora não mostrada, é possível identificar nesse trecho falas que pertencem ao menino e não ao narrador. Observe esse segmento: “Ele atravessou a sala num andar arrastado, chutando as pontas de cigarro pela frente. Ora, chocolate. Quem é que quer chocolate? E se o enredo fosse de crime, quem é que ia entender chegando assim começado? Sem nenhum entusiasmo pediu um tablete de chocolate”.

O trecho começa em 3a. pessoa (Ele atravessou…). Isso é dito pelo narrador. Em seguida, temos um segmento que expressa a voz do menino e não a do narrador (“Ora, chocolate. Quem é que quer chocolate? E se o enredo fosse de crime, quem é que ia entender chegando assim começado?”). Em seguida, volta o narrador (“Sem nenhum entusiasmo pediu um tablete de chocolate”).

A fala do menino se mistura à do narrador sem que haja qualquer indicação formal de que é o menino quem fala e não o narrador, por isso temos discurso indireto livre. No trecho, o enunciado “Esperar o quê, pô?!” também é expressão da voz do menino em discurso indireto livre.


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