Heterogeneidade II

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No último post, comecei a tratar da heterogeneidade discursiva. Em suma, mostrei que o discurso não é homogêneo, mas atravessado por outros discursos. Comentei que a heterogeneidade pode ser constitutiva ou mostrada e essa pode ser marcada ou não marcada. Tratei especificamente da heterogeneidade mostrada e algumas formas pelas quais ela se manifesta, o discurso direto, o discurso indireto e o discursivo indireto livre. Neste artigo, trato de maneira bastante simplificada da heterogeneidade constitutiva.

A heterogeneidade constitutiva, também chamada de dialogismo, revela uma propriedade essencial da linguagem humana, que é o fato de todo discurso se construir a partir de outros discursos. Aqui é necessário abrir um parêntese, porque o termo dialogismo é empregado em referência a coisas distintas. Em sentido amplo, dialogismo é a propriedade essencial da linguagem humana, que é o fato de todo discurso se construir a partir de outros discursos. Nesse sentido, é o mesmo que heterogeneidade constitutiva e não marcada no texto, ou seja, não localizável na cadeia do discurso. Em sentido restrito, dialogismo é usado para destacar que a linguagem humana é marcada pelo diálogo, ou seja, o eu quem fala sempre se dirige a um tu. Neste artigo, não trato do dialogismo em sentido restrito. Fecho o parêntese.

O dialogismo em sentido amplo, isto é, a heterogeneidade constitutiva, não está explicitado no texto, portanto não é localizável na cadeia do discurso, ao contrário do que ocorre com a heterogeneidade mostrada. Aquilo que o texto afirma se constrói a partir de um ponto de vista que refuta ou adere. Exemplifico.

O romance D. Quixote, de Cervantes, manifesta uma posição contrária àquela veiculada pela literatura das novelas de cavalaria. O discurso presente em D. Quixote se estabelece em relação polêmica com aquele tipo de literatura.

Outro exemplo: o discurso do empoderamento feminino se constrói em oposição a um discurso que nega a autonomia da mulher. Portanto, quando tomamos contato com o discurso do empoderamento feminino, ouvimos duas vozes: uma que defende a equidade dos gêneros e outra, a que se contrapõe, que nega essa equidade. Nesse caso, assim como em Dom Quixote, a relação entre os discursos é polêmica, já que um se constrói em oposição ao outro.

Percorrendo posts na redes sociais, você encontrará inúmeros exemplos de heterogeneidade constitutiva, já que os posts sobre muitos assuntos manifestam concordância (relação contratual) ou discordância (relação polêmica) com já-ditos. A leitura dessas postagens mostra de maneira bastante clara que não há discurso original; pois, como disse, tido discurso é atravessado por outro. Em outras palavras, todo discurso dialoga com outro.

Saber que a heterogeneidade é constitutiva do discurso (dialogismo em sentido amplo) é fundamental para entender os textos que lemos e para produzir nossos próprios textos. Lembre-se de que, ao produzir um texto argumentativo, por exemplo, sua opinião será sempre construída a partir de opiniões outras, ou seja, no seu texto, além de sua voz, sempre haverá manifestação de outras, que, no caso da heterogeneidade constitutiva, não estarão explicitadas no texto e, portanto, não são localizáveis na cadeia do discurso.

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