Histórias de perdão

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Histórias de perdão e seus narradores na França do século XVI, de Natalie Zemon Davis, publicado pela Companhia das Letras, em tradução de José Rubens Siqueira. É uma ótima leitura, principalmente para quem se interessa por construção de narrativas, literatura do Renascimento e história do Direito.

Nessa obra, Davis, que é autora também do festejado O retorno de Martin Guerra, publicado pela Paz e Terra, com tradução para o português de Denise Bottmann, trata das cartas de remissão, documentos por meio dos quais condenados à morte por crimes de homicídio pediam o perdão ao rei.

Davis analisa várias dessas cartas (reproduzidas nos anexos do livro), mostrando como as narrativas dos crimes eram construídas. Por produzirem efeitos de sentido de verdade, conseguiam persuadir o rei a conceder a remissão. São verdadeiras peças literárias que guardam relação com o Decameron, de Boccaccio, o Heptameron, de Margarida de Navarra, e a obra de Rabelais.

As cartas, redigidas em terceira pessoa por um notário que cobrava pelo serviço, não eram um arrazoado de fórmulas notariais, mas narrativas bem construídas com valor literário para manipular o rei e levá-lo a conceder o perdão. São narrativas breves, escritas em linguagem simples, de modo que o(a) acusado(a) pudesse decorá-la para que pudesse responder ao rei, caso este lhe perguntasse algo sobre o acontecimento narrado para que sua resposta não contradissesse o que constava da carta.

Davis consegue mostrar em sua análise da narrativa o que nas cartas é ficcional e o que real, detendo-se nas estratégias de manipulação constitutivas das narrativas. A principal delas consistia em construir um história de ira, e não de arrependimento. Os crimes sempre eram produto de impulsos incontroláveis (a bílis quente), decorrentes de uma ofensa sofrida, ou de um acidente (os acidentes narrados são muito pouco verossímeis), por isso as cartas não mencionavam rixas, para não sugerir premeditação.

Embora mulheres também se valessem das cartas de remissão para escapar da morte, a maioria dos que solicitavam o perdão eram homens. As mulheres cometiam menos crimes, no entanto sua explosão de raiva era muito maior que a dos homens. O sexo ilícito (sic) era apenas um dos motivos para que ela fosse morta pelo marido. Um dado curioso: uma das cartas narra que a mulher não foi morta porque fora flagrada na cama com o amante, mas porque, surpreendida em adultério, levantou-se do leito e investiu violentamente contra o marido desmancha-prazeres. A narrativa surtiu efeito: o marido obteve o perdão real.

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