Mecanismos de coesão

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No artigo, retomo assunto aqui já discutido, coesão, para o qual remeto o leitor, clicando no link. Desta feita, trato dos mecanismos de coesão. Neste artigo, abordo a coesão lexical; no próximo, discutirei a gramatical.

A coesão lexical é obtida por palavra lexical, aquelas que fazem a referência a algo que existe no mundo real ou criado pela imaginação. São exemplos de palavras lexicais:

  • os substantivos: livro, fotografia, computador, fada, bruxa, Deus etc.
  • os adjetivos: verde, vermelho, alegre, cansado etc.
  • os verbos: correr, nadar, pular, dirigir etc.

A coesão gramatical é obtida pela relação das palavras gramaticais na frase, cujo referente não está no mundo, mas no discurso, como exemplo, cito certos pronomes e advérbios.

Em uma frase como Eu estive aqui ontem, o sentido das palavras eu, aqui e ontem é dado pelo discurso: eu está se referindo àquele que está falando; aqui, ao lugar onde está no momento em se que fala; e ontem, ao dia anterior ao momento da enunciação.

Essa frase dita por Camila no dia 23 de maio no shopping center remete à Camila que esteve no shopping center no dia 22 de maio. Dita por Valéria no dia 11 de agosto na faculdade de Letras, remete à Valéria que esteve na faculdade de Letras no dia 10 de agosto.

Veja que o pronome eu e os advérbios aqui e ontem não têm um referente fixo; o referente dessas palavras é dado pela enunciação. A cada nova enunciação, o sentido de eu, aqui e ontem é atualizado.

São também consideradas palavras gramaticais aquelas que estabelecem relação entre segmentos do texto como as preposições e conjunções e os artigos.

Mas a coesão gramatical é assunto do próximo artigo. Vamos à coesão lexical, aquela que é obtida por meio de palavras de sentidos equivalentes, como os sinônimos, os hiperônimos, os hipônimos e os nomes genéricos. Sobre, hiperônimos e hipônimos, ver o artigo já publicado, clicando aqui.

A sinonímia diz respeito à identidade de significados. São chamadas sinônimas as palavras que remetem a um mesmo referente extralinguístico, como mexerica e tangerina; gordo e obeso; professor e mestre; xixi e urina. Por apontarem para o mesmo referente, muitas vezes é possível uma substituir a outra. É possível, por exemplo, retomar na sequência do texto a palavra professor por mestre. Observe:

O professor era muito rigoroso. O mestre não admitia que alunos entrassem depois de iniciada a aula.

A retomada de uma palavra por um sinônimo, no entanto, nem sempre é possível; porque, embora uma mesma palavra aponte para um mesmo referente, o contexto de utilização é diferente. É o caso de xixi e urina no trecho a seguir.

O médico solicitou ao paciente que procedesse à realização de diversos exames, hemograma completo, glicose, colesterol total e frações, triglicérides e urina. Ao olhar os resultados, o médico notou que o resultado do exame de xixi acusava uma infecção urinária.

A coesão lexical também pode ser obtida pelo uso de hiperônimos e hipônimos, palavras que mantém uma relação de sentido apoiada na categoria abrangente versus específico. Assunto já comentado em outro artigo. Para acessá-lo, clique aqui.

O hipônimo é a palavra que, em relação à outra, possui sentido mais específico (urologista em relação a médico). Hiperônimo é aquela que tem relação à outra (o hipônimo) tem sentido mais abrangente (médico em relação à urologista).

Nos textos, é comum que se apresente primeiro o hipônimo, sendo o hiperônimo o termo usado para a retomada, em outras palavras, o hipônimo funciona como termo antecedente e o hiperônimo, como anafórico. Observe a seguir exemplos de coesão resultantes da retomada de um hipônimo por um hiperônimo.

Nina adorava violetas, por isso sempre tinha essas flores em sua casa.

Flores, o hiperônimo, termo anafórico, retoma violetas, o hipônimo, o antecedente.

Suspeitava que pudesse estar com diabetes, por isso procurou um endocrinologista. O médico, no entanto, após alguns exames, garantiu que ele não estava com a doença.

Médico, o hiperônimo (termo anafórico), retoma endocrinologista (antecedente), o hipônimo; doença, o hiperônimo (termo anafórico), retoma diabetes, hipônimo (antecedente).

Outra forma de se estabelecer a coesão lexical é a retomada por meio de nomes genéricos, como: coisa, fato, negócio, pessoa, ideia etc. Tais palavras são denominadas de palavras-ônibus, por possuírem tantas acepções que servem como hiperônimos a referentes bastantes diversos. Observe.

A morte da Princesa Diana teve grande repercussão. O fato ocorreu em Paris em 1997.

Lúcia comprou um celular novo, mas descobriu que a coisa tem umas funções que não sabe bem para que serve.

Nesses dois exemplos, os termos anafóricos são o fato e a coisa.

Como você deve ter notado, em todos os exemplos a coesão lexical se efetiva por meio da anáfora. Introduz-se um determinado item e esse é retomado na cadeia do discurso por outro que mantém com o primeiro a relação de identidade.

Destaco que a reiteração de um mesmo item lexical pode funcionar como procedimento que garante a coesão textual. Ao contrário do que muita gente pensa, a repetição de uma palavra no texto nem sempre se configura um defeito; ao contrário, ela pode não só garantir a coesão como também conferir ao texto força argumentativa. Observe o exemplo a seguir.

“Depois de maio de 1940, os bons tempos foram poucos e muito espaçados: primeiro veio a guerra, depois a capitulação, em seguida a chegada dos alemães, e foi então que começaram os problemas para os judeus. Nossa liberdade foi seriamente restringida com uma série de decretos antissemitas: os judeus deveriam usar uma estrela amarela; os judeus eram proibidos de andar nos bondes; os judeus eram proibidos de andar de carro, mesmo que fossem carros deles, os judeus deveriam fazer suas compras entre três e cinco horas da tarde; os judeus deveriam frequentar barbearias e salões de beleza de proprietários judeus; os judeus eram proibidos de sair às ruas entre oito da noite e seis da manhã; os judeus eram proibidos de comparecer a teatros, cinemas ou qualquer outra forma de diversão; os judeus eram proibidos de frequentar piscinas, quadras de tênis, campos de hóquei ou qualquer outro campo de atletismo; os judeus eram proibidos de ficar em seus jardins ou nos dos amigos depois das oito da noite; os judeus eram proibidos de frequentar casas de cristãos; os judeus deveriam frequentar escolas judias. Você não podia fazer isso nem aquilo, mas a vida continuava”.

O trecho que você acabou de ler foi retirado do livro O diário de Anne Frank. Como o nome indica, o gênero é o diário. Se você fizer uma contagem, observará que a palavra judeus aparece 13 vezes nesse trecho. Neste caso, a repetição não deve ser vista como um defeito, mas como constitutiva do estilo. Além disso, a reiteração do item lexical judeus contribui não só para garantir a coesão do texto na medida em que amarra ideias umas às outras, como também é importante recurso para conferir força argumentativa ao enunciado. Note que, ao repetir várias vezes essa palavra, a autora chama a atenção para o fato de que aos judeus não era permitido fazer quase nada.

A coesão também pode decorrer da omissão de um item lexical que pode ser facilmente recuperado no contexto. Temos, nesse caso, coesão por elipse. Nos diálogos, isso é comuníssimo. Observe.

– Meu carro é vermelho. E o teu?

– O meu é cinza.

O primeiro interlocutor introduziu o item lexical carro. Como esse item já conhecido do segundo interlocutor, é omitido na segunda frase (E o teu? – referindo-se ao carro). O segundo interlocutor também omite esse item em sua fala: O meu (carro) é cinza. Observe que a elipse do termo carro em nada prejudica o sentido do texto; pelo contrário, o texto fica mais fluido e conciso.

Evidentemente, o termo elíptico pode não ser um nome, ou seja, um item lexical, mas um pronome, que é um item gramatical. Observe.


Ele chegou cedo e saiu tarde.

Foi apresentado um item lexical, o pronome ele, que ficou elíptico na segunda oração: e [ele] saiu tarde.


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