O conceito de norma

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As palavras são polissêmicas, isto é, podem ser usadas em diversos sentidos, por isso é sempre bom explicitar em que sentido empregamos determinada palavra se supusermos que o leitor ou ouvinte possa atribuir a ela sentido diverso do que pretendemos. Neste artigo, falo inicialmente da palavra norma em sentido amplo e, a seguir, dedico algumas palavras a um tipo de norma, a gramatical.

Usamos a palavra norma para designar um preceito, uma regra, um padrão. As normas estão presentes em diversos campos da vida social, daí termos as normas jurídicas, as normas éticas, as normas de comportamento, as normas gramaticais etc. Este post tem por objetivo discutir essas últimas. Ressalto que a própria palavra gramática cobre várias coisas, por isso é comum que ela venha acompanhada de um adjetivo restritivo: gramática normativa, gramática histórica, gramática descritiva, gramática gerativa, gramática internalizada, gramática funcional etc.

A gramática normativa, procurando estabelecer, entre vários, um determinado uso, que se convencionou denominar padrão, não nos mostra a língua como ela é, mas como deveria ser. E, entre o que a língua é e como deveria ser, há um verdadeiro abismo. Por outro lado, estando no campo do dever ser e não do ser, a gramática normativa não é, como a linguística, uma ciência. Por não ser uma ciência, não tem a preocupação de mostrar como funciona a língua, quais são suas regras intrínsecas, aquelas que nos permitem a formação de enunciados possuidores de sentido de que são aprendidas desde cedo pelo convívio social. Isso cabe à linguística, que é o estudo científico da linguagem humana. As normas gramaticais exprimem juízos de valor.

A gramática normativa apresenta características semelhantes aos códigos de natureza ética ou moral, que nos impõem o que devemos ou não fazer, o que é permitido e o que é proibido, o que é aceitável e o que é inaceitável. As normas que prescreve são injuntivas, isto é, têm caráter imperativo, pois impõem um dever-fazer ou um não dever-fazer. Na medida em que proíbem ou obrigam, podemos dar a elas a forma de mandamentos:

Nunca comece uma frase por pronome oblíquo átono.

Acentue graficamente todas as palavras proparoxítonas.

Não dê o mesmo complemento a termos de regências diferentes.

Assinale com o acento grave a fusão de dois aa.

Use a mesóclise no futuro do presente e no futuro do pretérito.

Etc.

Funcionando como uma espécie de guia de conduta, de um receituário, as normas têm função de impor um comportamento padrão, por isso a norma estabelecida pela gramática normativa é denominada norma-padrão. É importante saber que essa norma não tem existência empírica, ou seja, ela não é falada por nenhum falante, não é uma variedade linguística e, portanto, não se confunde com a variedade culta, essa sim com existência empírica (veja o post Variação linguística e norma culta, clicando aqui). Quando se criam normas, espera-se que todos obedeçam àquele imperativo. Elas são estabelecidas por grupos sociais para que sejam cumpridas. Não se cria uma norma para que ela só fique no papel.

Na vida social, existem inúmeros tipos de norma: as normas de natureza religiosa (os mandamentos, por exemplo), as normas jurídicas (as leis, os decretos), as normas de etiqueta, as normas de trânsito, as normas de utilização do espaço urbano, as normas gramaticais etc. Para que seja eficaz, a norma deve estar adequada ao fato social que visa regular e conter uma sanção, ou seja, uma punição para garantir que aquilo que ela determina será cumprido.

Norma e fato social andam juntos, sendo que a primeira procura regular o segundo. Como os fatos sociais mudam, as normas deveriam acompanhar essa mudança a fim de espelhá-los com a máxima fidelidade sob pena de perderem sua função. Fatos novos determinam o surgimento de novas normas. O surgimento dos aparelhos de telefonia celular fez surgir uma norma de trânsito que proíbe o condutor de veículo de fazer uso do celular enquanto dirige. O crescimento do comércio pela internet fez que as leis de proteção ao consumidor se adaptassem a essa nova realidade.

Aceitamos tranquilamente uma norma que proíbe matar alguém porque nossa tradição religiosa e cultural repele esse tipo de comportamento e a punição para seu descumprimento é rigorosa. Um fato estranho é que, em alguns países, a sanção para quem transgride a norma que estabelece que não se deve matar alguém é que aquele infringiu a norma seja morto. Volta-se, portanto, a uma norma que se pensava estar em desuso, a lei de talião: olho por olho, dente por dente. Acrescento que nem todas as normas apresentam-se na forma escrita, como a que proíbe o incesto.

A sanção é o elemento que visa garantir o cumprimento da norma. Aquele que transgride uma norma jurídica (mata alguém, por exemplo) é punido com uma pena (reclusão de seis a vinte anos). A sanção, mesmo quando rigorosa, não impede sua transgressão. Casos de homicídio, de estacionamento em lugares proibidos, de pessoas dirigindo sem cinto de segurança, falando ao celular, ou até mesmo embriagadas ocorrem com frequência, embora esses comportamentos sejam rigorosamente punidos com multas ou mesmo com a prisão do infrator.

Uma norma como “Homem não usa joia. Talvez um anel com as armas da família”[1] não possui eficácia nenhuma, por não mais refletir um fato social aceito pela comunidade, já que atualmente muitos homens usam joias e isso não implica nenhuma sanção. Um homem pode, hoje em dia, pelo menos nos grandes centros urbanos, usar brincos sem que isso implique alguma sanção social ou o torne objeto de deboche.

A norma que impede os homens de usarem joias envelheceu por não mais refletir o fato social; em consequência, perdeu sua eficácia. É digno de nota que, no enunciado daquela norma, ainda se fale em “anel com as armas da família”. Podemos comparar essa norma com aquela estabelecida pela gramática normativa que obriga o uso da mesóclise (“convidar-me-ão”, “revelar-nos-iam”), que efetivamente envelheceu e não mais representa um uso efetivo da língua, embora ainda seja prescrita pela gramática tradicional.

Para ter eficácia, é importante que a norma reflita o fato social da maneira como ele ocorre no momento em que a regra foi formulada, por isso é fundamental que a norma seja sempre revista para que esteja adequada ao fato que normatiza. A norma sobre o limite máximo de velocidade de veículos automotores nas estradas, avenidas e ruas teve de ser modificada para se adequar a uma nova realidade social: o aumento de vítimas em acidentes de trânsito.

Muitas regras estabelecidas pela gramática normativa são pouco eficazes, uma vez que não refletem de modo adequado o fato social que normatizam (o uso concreto que os falantes fazem da língua, mesmo em textos escritos, costuma apresentar diferenças em relação ao que a gramática normativa preconiza – lembremo-nos do caso da mesóclise já citado) e porque a transgressão a elas, na maioria das vezes, não implica sanção nenhuma. A exceção fica por conta das situações em que se requer o uso daquilo que se convencionou chamar de norma-padrão, como é o caso de provas e concursos.


[1] CARVALHO, Marcelino de. Guia de boas maneiras. 9. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1974.

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