O conto, um gênero narrativo

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As narrativas começam com a própria história da humanidade e fazem parte de todas as civilizações, sejam de onde forem, e apresentam-se sob os mais variados gêneros: mito, lenda, fábula, conto, novela, romance, histórias em quadrinhos, cinema etc. Roland Barthes, no texto ‘Introdução à análise estrutural da narrativa’ afirma que “não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas…”.

Sobre o papel das narrativas, o escritor austríaco Robert Musil em seu livro ‘O homem sem qualidades’ afirma que “no relacionamento básico com si mesmos, a maioria dos homens são contadores de histórias”. Para Aristóteles, para quem uma das características da arte é a mímesis, a narrativa (diegesis) é uma das formas de imitação poética; a outra seria a imitação direta feita por atores falando a um público (o gênero dramático).

As narrativas materializam-se em textos verbais, não verbais, sincréticos, orais ou escritos, portanto qualquer estudo que se volte à narrativa terá como objeto de investigação o texto. As reflexões sobre a narrativa que apresento neste post restringem-se a textos exclusivamente verbais. Evidentemente, pode haver uma unidade mínima narrativa, menor que o texto, como a frase que abre ‘Mrs. Dalloway’, de Virgínia Woolf: “A Sra. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores“. Um texto narrativo não é, no entanto, uma soma de frases narrativas, por isso a unidade de análise deverá ser sempre o texto.

Um texto é narrativo porque nele predominam sequências textuais narrativas, ou seja, nesse tipo de texto podem-se encontrar também sequências descritivas, argumentativas, explicativas, dialogais. O estudo do texto narrativo deverá então observar como sequências narrativas se articulam, que relação esse texto mantém com outros (intertextualidade), que características composicionais apresenta, a que gênero pertence etc.

Dispomos de uma competência narrativa, o que significa que, entre os textos que lê, o leitor sabe distinguir aqueles que contam uma história dos que não contam. É também capaz de reconhecer versões diferentes de uma mesma história, de resumir a história, de reconhecer quem é o narrador etc.

As narrativas podem se referir a um fato real ou imaginário. O fato narrado em geral é uma ação atribuída a agente humano ou antropomorfizado (como nas fábulas). A principal característica das narrativas literárias é o fato de serem ficcionais suas formas mais comuns na atualidade são o conto, o romance e a novela. Como adiantei no título, neste post trato apenas do conto.

O conto

O conto é um gênero narrativo que costuma ser sido definido pela sua extensão, o que determina que possua, quanto à sua estrutura, características especiais, diferenciando-o de outras formas narrativas em prosa (novela e romance). Não há propriamente uma definição de conto, o melhor seria dizer que há teorias do conto, enquadradas numa teoria mais ampla, a narratologia, estudo das formas narrativas literárias e não literárias, tendo por fundamento os estudos da semiótica.

Mário de Andrade, para quem conto é aquilo que seu autor batizou de conto, já chamava a atenção para esse fato ao iniciar seu conto Vestida de negro com a seguinte afirmação: “Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade“.

Os gêneros são formas relativamente estáveis, isso é visível quando se compara um conto recolhido pelos irmãos Grimm a contos de Cortázar, Hemingway, Borges, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, por exemplo. Por isso não apresento uma definição fechada de conto. Prefiro, apoiado em alguns autores e teorias sobre o conto, apresentar as características desse gênero literário, por meio de analogias a outras formas narrativas, particularmente o romance.

O conto é uma narrativa condensada (em inglês é denominado short-story = história curta, literalmente), que apresenta um número pequeno de personagens, unidade de tempo restrito, normalmente centrado em um único evento, abdicando de análises minuciosas, digressões e descrições pormenorizadas. Por ser uma forma narrativa, o conto costuma ser analisado e definido em relação a outras formas de narrar, particularmente o romance. Se o romance é um gênero ligado à tradição escrita, o conto tem suas origens na tradição oral, no ato de contar histórias, que eram passadas de geração a geração. Esse conto de tradição oral é o que André Jolles, em seu livro ‘Formas simples’, chama de forma simples, ou seja, aquela que mantém sua forma através dos tempos, ao contrário das formas artísticas, que são as criadas por um autor e que não podem ser recontadas sem que se percam suas peculiaridades. Exemplificando: uma adivinha (o que é o que é?), para Jolles, é uma forma simples, pode-se recontá-la inúmeras vezes e ela manterá sempre a mesma forma. Já um conto, como A cartomante, de Machado de Assis, é uma forma literária. Quando é contado para alguém, ele já não é mais o mesmo conto escrito por Machado de Assis. Ao conto transmitido oralmente damos o nome de conto popular.

José Paulo Paes, no livro ‘A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções’, ressalta que formas literárias atuais têm sua origem em formas simples. Por exemplo, o conto policial seria uma forma evoluída da adivinha. Para Jolles, o conto só adquiriu o status de forma literária a partir do momento em que os irmãos Grimm reuniram uma coletânea de narrativas sob o título de Contos para crianças e família, em 1812.

A passagem da forma simples conto popular para a forma literária está ligada à passagem do contador de histórias para o narrador ficcional, o que implica uma mudança na forma de recepção: no conto popular a narrativa é dirigida a um auditor (a transmissão é oral); no escrito, a um leitor. Nos contos orais, a recepção é em tempo real; no conto escrito, é diferida. Essas mudanças trazem consigo outras, como a mudança da linguagem e a expansão do público receptor, que passa a ser mais heterogêneo, uma vez que a circulação dos textos passa a não se restringir apenas à comunidade sociocultural para quem as histórias eram narradas.

Outra distinção entre o conto popular e o conto literário reside na autoria, enquanto os primeiros são anônimos, os segundos possuem autoria definida. Os contos populares têm servido de matéria-prima para a elaboração de obras literárias, por isso é comum encontrar ecos ou referências diretas ou indiretas a eles em contos e romances modernos. A personagem Oskar do romance O tambor, do escritor alemão Günther Grass, é inspirado no Pequeno Polegar. Guimarães Rosa inicia seu conto Conversa de bois fazendo referência aos contos maravilhosos: “Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas“. Nos contos do escritor moçambicano Mia Couto, em que realidade e fantasia se fundem, ressoam vozes de histórias da tradição oral africana.

Nádia Battella Gotlib, no livro ‘Teoria do conto’, ressalta que o conto difere-se do relato. Para essa autora, o relato traz de volta algo que ocorreu, enquanto no conto há narração de fato criado, inventado, ou seja, o que caracteriza o conto é o fato de ser uma narrativa ficcional. O romance é cumulativo, ou seja, nele há uma sucessão de eventos que se encadeiam em direção ao clímax, o ponto de maior tensão na narrativa, e, posteriormente, ao desfecho ou desenlace, que é a resolução do conflito com a consequente volta à situação de estabilidade. O conto, por ser limitado em sua extensão, procura captar um momento, um instantâneo.

O célebre contista Júlio Cortázar compara o romance a um filme enquanto o conto é comparado a uma fotografia. Para esse autor, o romance realiza um abordagem horizontal; o conto, uma vertical. Por ser uma narrativa condensada, o conto elimina tudo o que acessório, centrando-se naquilo que é essencial à trama, evitando intrigas acessórias. Uma frase de Cortázar ilustra bem a diferença entre o conto e romance: “o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute.”

Para um outro grande contista e também teórico do conto, Edgar Allan Poe, a extensão é requisito fundamental do conto, já que esse gênero literário deve buscar uma unidade de efeito, enganar, aterrorizar, encantar ou deslumbrar, e essa só pode ser conseguida se o texto for possível de ler numa assentada, de meia a duas horas. Poe, no ensaio chamado ‘A filosofia da composição’, ressalta que o trabalho de um contista deve ser racional, tudo deve ser pensado a fim de se obter o resultado pretendido, que é criar o interesse do leitor, para isso “… inventará os incidentes, combinando-os da maneira que melhor o ajude a conseguir o efeito preconcebido…”.

O conto, por ser um gênero narrativo, assim como a novela e o romance, está centrado em três pilares: evento, personagem e espaço, além do fato de a narrativa se desenrolar num tempo cronológico ou psicológico. Tempo cronológico é o tempo físico, mensurável, objetivo; tem, portanto, caráter quantitativo; tempo psicológico é o tempo vivido interiormente, é subjetivo e não coincide com o tempo cronológico; tem caráter qualitativo. A experiência demonstra que às vezes o tempo cronológico de um minuto parece durar horas e, outras vezes, aquilo que ocorreu em horas parece ter transcorrido em minutos.

A forma como esses três pilares são tratados no conto e no romance servem de elemento distintivo entre esses dois gêneros. O conto, ao contrário do romance, normalmente centra-se num evento único, possui poucas personagens e desenrola-se num espaço limitado. Outra diferença fundamental entre romance e conto é que, no conto (e também na novela), o final coincide com o clímax, ao passo que no romance o clímax não está no final, mas num momento anterior. No romance, o final corresponde ao desenlace ou desfecho, evento ou conjunto de eventos que, pondo fim ao conflito, encerra a narrativa. Em alguns romances, o desfecho pode vir seguido por um epílogo, capítulo ou comentário breve sobre o destino das personagens principais. Para o crítico russo Boris Eikhenbaum, a existência de um epílogo é critério que diferencia o romance do conto, por isso é raro, um final inesperado no romance, fato comum nos contos.

No livro ‘O conto na sala de aula’, que escrevi em parceria com Jessyca Pacheco, discuto com pormenores esse gênero literário, apresentando aspectos teóricos e sua aplicação na leitura de contos comentados.

Para mais informações sobre essa obra, clique no link abaixo.


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