O dito-cujo

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Me chamaram a atenção para o fato de que em meus textos revelo gostar do cujo. Não é que gosto de usar o cujo, assim como não gosto de usar gravata. Algumas vezes sou obrigado usar gravata; em outras, sou obrigado a usar o cujo.

As gravatas têm uma vantagem sobre o cujo, pois apresentam vários modelos, desenhos e cores; mas o cujo é sempre cujo. No máximo, ele sofre variações de gênero e número para concordar com o termo a que se refere (cujocujoscujacujas). Se o cujo já é esquisito, vai parecer mais esquisito ainda quando antecipado de preposição: por cujo, de cujo, a cujo, sobre cujo.

Quando era aluno na Faculdade de Direito, havia um professor que, além de usar gravata, gostava de usar uma linguagem extremamente formal e sempre intercalava um por cujo intermédio em sua fala. Ainda na Faculdade de Direto, outro professor me apresentou a expressão “de cujus”, que vim a saber que era o sujeito que morreu; mas, segundo o professor, não era um morto qualquer, mas um morto rico, pois o de “de cujus”era aquele que morreu deixando bens para serem divididos entre seus herdeiros. O “de cujus”, significando o morto que deixou bens, é um pedaço da sentença latina “de cujus successione agitur”, ou seja, em vez de se falar “aquele de cuja sucessão se trata”, passou-se a dizer simplesmente “de cujus”, que acabou virando um substantivo, o de cujus, isto é, o falecido cujos bens estão em inventário.

Mas deixemos o cujus latino, aquele que já morreu, e voltemos ao nosso cujo, que está moribundo na UTI. Em português, cujo é um pronome relativo. Isso significa que ele é uma palavra que retoma (ou substitui numa outra linguagem) um nome que apareceu antes, que chamamos de antecedente, e o projeta numa oração que ele introduz. Outros pronomes fazem isso também, por exemplo, o pronome que:

A menina que estuda mora na casa ao lado… (o que retoma o antecedente menina; que = a menina).

Não encontrei o produto que procurava. (o que retoma o antecedente produto; que = produto).

Nenhum problema em se usar o que, não é mesmo? Mas quando se deve usar o cujo? A resposta é simples: o cujo retoma um nome anterior, o antecedente, e estabelece uma relação de posse com o nome que determina. Há entre eles uma relação correspondente à ideia de posse.

Quando se fala em posse, tem-se uma relação entre um possuidor, que pode ser pessoa ou coisa, e a coisa possuída. A coisa possuída é sempre o antecedente e o possuidor é sempre o consequente. Assim:

O motorista cujo veículo foi apreendido acumulava muitas multas.

O motorista = antecedente, o possuidor; veículo = consequente, a coisa possuída.

Entre motorista e veículo, a relação é de posse: veículo do motorista, veículo dele. O cujo, por estabelecer relação que dá ideia de posse, costuma equivaler a “do qual”, “de quem”. Poderíamos dizer assim: O motorista de quem o veículo foi apreendido acumulava muitas multas. Ao fazer a substituição, mantive o mesmo sentido, mas você deve ter percebido por que ainda eu insisto usar o cujo.

Se você pretende usar o cujo, atente para algumas observações. Na linguagem dita culta, não se deve empregar artigo entre o cujo e o nome que ele determina e com o qual concorda. Assim: nessa variedade linguística não se usa motorista cujo o veículo; motorista cuja a motocicleta, mas cujo veículo e cuja motocicleta.

Como disse, o cujo pode vier precedido de preposição, como em O menino de cujo pai lhe falei e Esta fazenda por cujas veredas caminhei… Veja que as formas verbais falei e caminhei reclamam as preposições de e por, respectivamente: falei do pai do menino e caminhei pelas veredas da fazenda.

Quando disse que o cujo está moribundo, ressaltei o fato de que sua ocorrência é verificada apenas em usos de linguagem mais formais. Na linguagem popular, as pessoas abandonaram o cujo e usam o que. Em vez de dizerem A menina cujo pai é professor estuda naquela escola, dizem A menina que o pai dela é professor estuda naquela escola.

Por último, volto ao cujo do título. Usa-se também cujo como substantivo. Nesse caso, virá precedido de artigo. O sentido é de “o cara”, “o sujeito”, “fulano”, como em Fiquei com uma baita raiva e disse pro cujo que não parecesse mais. Nesse sentido, também se usa “o dito-cujo”.

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