Pai patrão

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O Nobel de literatura deste ano, dado a Annie Ernaux, fez com que o romance dito autoficção voltasse a ser assunto. Acabei de ler Pai Patrão, do sardo Gavino Ledda, em tradução de Liliana Laganá e Ivan Neves Marques Júnior, publicado pela Berlendis & Vertechia, uma editora paulistana que tem em seu catálogo literatura italiana do século 20. Nele, há obras de Pirandello, Svevo, Lampedusa, Moravia, Natalia Ginzburg entre outros.

Li Pai Patrão não movido pelo fato de a autoficção estar na ordem do dia. Quando peguei para ler, nem sabia que o livro de Ledda era autoficção. Me propus a lê-lo porque há muitos anos assisti ao excepcional Pai Patrão, dos irmãos Taviani. O filme, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, me marcou demais e descobri que é baseado no livro de Ledda. O filme, ao contrário do livro, não é nada fácil de achar.

A ação se passa na área rural do norte da Sardenha (a família mora na cidade de Siligo) e narra história de Gavino, vista do ponto de vista dele mesmo. Autoficção ou romance autobiográfico, chamem como quiserem.

A narrativa se inicia em janeiro de 1944, quando o pai de Gavino vai à escola tirar o filho, então com cinco anos de idade e ainda não alfabetizado, para trabalhar no campo como pastor. A relação entre pai e filho passa a ser a de patrão e empregado e é marcada pela brutalidade, com agressões físicas violentíssimas. Muitas vezes, o menino é deixado sozinho no campo pelo pai, que volta à cidade para tratar de algumas coisas.

Acompanhamos a vida de Gavino e dos demais sujeitos, pessoas pobres que trabalham no campo, num processo de desumanização constante. A brutalidade do pai não se restringe a Gavino e se manifesta também em relação à mulher. As relações entre marido e mulher são animalescas. Ele sequer tira as botas imundas de lama para deitar com a mulher. No meio dessa brutalidade, o analfabeto Gavino aprende a ler a natureza e a se relacionar com os animais.

Aos 20 anos, Gavino entra no exército e começa a aprender a ler e a escrever, o que não é nada fácil para ele, porque antes tem de aprender o italiano, já que dominava apenas o sardo.

Alfabetizado e falando italiano, volta a Siligo, mas a relação com o pai ainda é bastante ruim. O encontro de Gavino com o pai depois que volta do exército é uma das mais belas páginas do livro. Pai e filho têm dificuldade de se reconhecer com tais. Diz Gavino sobre esse momento

Dentro do nosso tímido silêncio, ambos nos preparávamos a ser aquilo que nuca havíamos podido ser: pai e filho. […] Eu quase sentia vergonha de me tornar filho diante do meu patrão, que sempre me havia dominado. Ele, em seu embaraço, demonstrava mais ou menos o mesmo sentimento: o acanhamento de se tornar pai. Como se cada um de nós estivesse acostumado ao próprio papel, agora nenhum dos dois queria renunciar a ele. (p. 225)

Por fim, Gavino consegue realizar o sonho de entrar na universidade em Roma e se forma em linguística. O aprendizado do italiano é o que lhe desperta o interesse por estudar linguística.

Numa excelente apresentação do livro, Bruno Berlendis de Carvalho, que esteve na Sardenha em 2003 conversando com Ledda, diz que o autor cogita escrever uma nova versão do romance, agora em sardo (o romance foi publicado originalmente em italiano, ‘Padre padrone’)

A seguir, um trecho da passagem em que Gavino é arrancado da escola pelo pai.

“Com os olhos cheios de lágrimas […] olhei pela última vez, intensamente, toda a sala de aula, como se quisesse levá-la comigo, passando em revista todas as carteiras, Em meu silêncio despedi-me de todos os meus colegas imprimindo-os na mente para não esquecê-los nunca mais. Mais uma vez olhei fixamente os detalhes da sala que mais tinham marcado minha fantasia: a lousa, a mesa da professora e os mapas geográficos.

‘Bom! Até logo, senhora professora.’

‘Coragem, Gavino’, sussurrou a professora, fazendo desaparecer devagar seu rosto sorridente, ao fechar a porta.”

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