Paixões em “Crime e castigo”

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Começo com uma citação de Michel Meyer, sobre paixão.

“Toda paixão tem, tal como o amor, uma venda sobre os olhos: esta venda esconde-lhe aquilo que ela não quer ver, mas ela vê tanto melhor aquilo que quer ver, ou seja, o que imagina. A paixão é, então, ao mesmo tempo, insensata e lógica e tanto mais insensata quanto mais lógica for.”

Meyer ainda afirma que “a paixão é  relação com o outro e representação interiorizada da diferença entre nós e esse outro”.

Aristóteles, na Retórica, enumera catorze paixões: cólera, calma, temor, segurança, (confiança, audácia), inveja, impudência, amor, ódio, vergonha, emulação, compaixão, favor (obsequiosidade), indignação e desprezo.

Neste post, teço, com fundamento na retórica clássica, algumas considerações sobre a vergonha e a compaixão no romance Crime e castigo, de Dostoiévski, sem a pretensão de esgotar o assunto. 

A vergonha

Uma das primeiras referências à vergonha na literatura universal está presente no Antigo Testamento. Adão e Eva viviam no paraíso e não sentiam vergonha. Ao provarem do fruto da árvore da sabedoria, passaram a sentir vergonha de estarem despidos. Uma das representações desse episódio bíblico, mostra Adão tapando seus olhos e Eva encobrindo seus seios e sua genitália. Essa representação nos mostra como a vergonha está intimamente relacionada ao olhar: Adão não quer olhar e Eva não quer se deixar olhar, o que nos leva a afirmar que a vergonha é uma reação à imagem que o outro faz de nós. Na vergonha, torno-me inferior. A interiorização do olhar do outro devolve-me uma imagem inferior de mim mesmo.

Expulsão do Paraíso Masaccio

Na relação com o outro, certos pensamentos são escondidos visando uma certa preservação da imagem de si. Portanto a vergonha está ligada à noção de segredo. Todos têm um segredo. Sente-se vergonha quando é tornada pública uma coisa que era da ordem do privado.

Segundo Aristóteles, experimentamos vergonha de todos os atos que nos parecem desonrosos, que indicam baixeza da alma, quer para nós, quer para aqueles que estão ao nosso cuidado.

Aristóteles, ao comentar as paixões, procura apresentar seus contrários: ao amor, ele opõe o ódio; ao temor, a confiança; à compaixão a indignação. Para o estagirista, a paixão oposta à vergonha é impudência. Enquanto que na vergonha existe a preocupação com o olhar do outro, na impudência a imagem que o outro tem de mim carece de importância.

A compaixão

Segundo Aristóteles, “a compaixão é um certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou penoso e atinge quem não o merece, mal que poderia esperar sofrer a própria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece iminente”. Segundo ainda o filósofo, “sentimos compaixão daqueles que conhecemos, com a condição de não serem nossos parentes muito próximos; pois neste caso experimentamos os mesmos sentimentos que se fôssemos nós a sofrer”.

A palavra compaixão deriva do latim, “compassio,onis, sofrimento comum, comunidade de sentimentos, opiniões comuns, simpatia”. Significa “sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de minorá-la; participação espiritual na infelicidade alheia que suscita.

Para Aristóteles, a paixão que se opõe à compaixão é a indignação. Para o estagirita, sente-se compaixão pelos que são infelizes sem merecer e indignação pelos que são felizes imerecidamente.


Resumo da obra
Crime e Castigo

Para quem ainda não leu, faço um resumo de Crime e Castigo, romance de Fiódor Dostoiévski, publicado em 1866.

Crime e castigo narra a história de um ex-estudante de Direito, Rodion Românovitch Raskólnikov, que vive em estado de extrema pobreza em São Petersburgo, Rússia. Mora em pequeno quarto alugado e oscila entre um comportamento altruísta e um depressivo.

Com base em uma teoria criada por ele e publicada em um artigo no jornal da universidade, arquiteta um plano de matar uma usurária, Aliena Ivanovna, para apoderar-se de seu dinheiro e usá-lo, segundo ele, para uma boa causa.

Raskólnikov acreditava que as pessoas estavam divididas entre “ordinárias” e “extraordinárias”: as ordinárias deviam viver na obediência e não tinham o direito de transgredir as leis, ao passo de que as extraordinárias (notadamente Napoleão) tinham o direito, não declarado, de cometer crimes e de violar leis, desde que suas intenções, fossem úteis à humanidade como um todo. Raskólnikov pensou sobre sua própria teoria por meses e acreditava ser uma dessas pessoas “extraordinárias” e se permitiu cometer o crime.

Ocorre que seu plano não deu certo. Ao matar a velha Aliena a machadadas, é surpreendido pela presença da irmã de Aliena, Lisavieta, e tem de matá-la também. Abandona o local, levando pouquíssimas coisas e nem chega a se valer delas, enterrando-as sob uma pedra. A chegada a São Petersburgo de sua mãe, Pulkhéria Alieksándrovna Raskolnikova, e de sua irmã, Advótia Romanóvna (Dúnia), agrava a sua crise. Dúnia é pretendida por Piotr Pietrovitch Lújin, mas Raskólnikov é contrário ao casamento, porque sabe que a intenção de Lújin é anular Dúnia.

Nessa mesma época, chega a São Petersburgo Arkadi Ivánovitch Svidrigáilov, ex-patrão de Dúnia, que num passado não muito distante a tinha assediado. Todos esses acontecimentos atormentam ainda mais Raskólnikov, que entra  num processo de crise e começa a ceder à tentação de se confessar. Numa taberna, conhece um bêbado inverterado, Marmieládov, que lhe conta sua vida. Marmiéladov morre atropelado e Raskólnikov ajuda a família com as despesas com o enterro, entregando à atual esposa de Marmieládov, Catierina Ivánovna, uma tísica com 3 filhos pequenos, todo o dinheiro que havia recebido há pouco de sua mãe. Raskólnikov tem a oportunidade de conhecer a filha do primeiro casamento de Marmieládov, Sônia, uma prostituta de dezoito anos.

O tempo todo há uma disputa entre Raskólnikov que quer esconder seu crime e o juiz de instrução Porfiri Pietróvitch, que por um meio de interrogatório não convencional pretende fazer com que Raskólnikov confesse o crime. Porfiri crê que Raskólnikov deixará se dominar pelas paixões. Insiste em que Raskólnikov tem vergonha em confessar. É a Sônia que acaba confessando seu crime. Sônia aconselha a Raskólnikov a confessar o crime às autoridades e entregar-se.

Raskólnikov é condenado, mas tem a pena reduzida a oito anos de trabalhos forçados na Sibéria por bons antecedentes. Sônia o acompanha. Começa aí a redenção de Raskólnikov.

A vergonha e a compaixão em Crime e Castigo

Raskónikov não sente vergonha por ter cometido um crime bárbaro. Afinal ele construiu uma teoria que justifica seu crime, ou seja, há uma racionalização da paixão. Para Raskólnikov sequer houve crime, na medida em que usa um artifício para justificar seu ato. O interessante no livro é esse debate: houve ou não assassinato?  

A vergonha que ele sente e que é seu tormento decorre inicialmente do fato de ele sentir que seu plano falhou na medida em que não resiste à tentativa de confessar o crime e, por outro lado, decorre do olhar que o outro projeta sobre si.  Seu drama interior está relacionado ao fato da imagem que sua mãe e sua irmã Dúnia terão dele ao saberem que ele é um assassino, e isso é causa de sua vergonha.

Uma personagem fundamental para entendermos todo drama de Raskólnikov e como as paixões o movem é a prostituta Sônia. Bakhtin, em Problemas da poética de Dostoiévski, assinala o caráter dialógico do romance de Dostoiévski. Conhecemos Raskólnikov não só por suas falas, ações e pensamentos, mas também pelo diálogo que mantém com as demais personagens, particularmente Sônia.

A relação entre Raskólnikov e Sônia é de compaixão recíproca. Compaixão e vergonha são as paixões que aproximam os dois personagens centrais da narrativa. É para Sônia que Raskólnikov confessa seu crime. Os personagens definem-se um em função do outro, e essa definição é impulsionada pelas paixões.

Bakhtin, na obra citada, afirma que

A personagem não interessa a Dostoiévski como um fenômeno da realidade, dotado de traços típico-sociais e caracterológico-individuais definidos, rígidos, como imagem determinada, formada de traços monossignificativos e objetivos que, no seu conjunto, respondem à pergunta: “quem é ele?”. A personagem interessa a Dostoiévski enquanto ponto de vista sobre o mundo e sobre si mesma, enquanto posição racional e valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade circundante. Para Dostoiévski não importa o que sua personagem é no mundo mas, acima de tudo, o que é o mundo para sua personagem e o que ela é para si mesma.

Em conclusão, o espaço em que se movem os personagens de Dostoiévski é a paixão. No romance do autor russo, elas são a mola propulsora do comportamento. Não há racionalidade somente, o próprio nome do personagem central do romance, Raskólnikov, assinala a cisão entre o racional e o emocional: raskol, em russo, significa dividido, cindido. Se Raskólnikov usa razão para planejar e executar um crime e pela razão justifica seu ato, o olhar do outro, particularmente de Sônia, faz com que as paixões se manifestem e quanto mais Raskólnikov tenta sublimá-las, mais elas lhe afloram, levando-lhe a reconhecer seu crime, a admitir que não é um super-homem e buscar sua redenção.

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