Reflexões sobre a noção de texto I

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O assunto deste artigo e do próximo são algumas reflexões sobre a noção de texto. Pretendo mostrar que, no processo de leitura, autor e leitor interagem por meio do texto. Assim, para efeitos didáticos, ilustrarei o processo de leitura como processo interativo por meio de um triângulo. Neste post, tratarei do autor; no seguinte, do leitor e do texto.

Não nos comunicamos por frases isoladas, mas por textos. A noção de texto ganha, portanto, um caráter relevante nos estudos da linguagem, pois esta se manifesta em textos concretos que fazem referência a uma situação real de interlocução.

Conceitua-se leitura como um processo interativo de construção de sentidos. Autor e leitor são os sujeitos que interagem por meio do texto. Adianto que o sentido não está no texto, mas é construído pelo leitor na interação. Como disse na introdução a este artigo, pode-se esquematizar o processo de leitura por meio de um triângulo, como o abaixo.

Nesse esquema, T representa texto, A, autor e L, leitor. Observe que a linha que une autor e leitor não é contínua. Isso significa que a interação autor-leitor se dá por meio do texto. Nos textos escritos, a recepção do texto é diferida, ou seja, não ocorre no momento de sua produção, ao contrário do que ocorre na conversação diária, em que a recepção é simultânea à produção. Ao lermos, por exemplo, um conto de Machado de Assis, estamos entranto em contato com um texto que foi escrito há mais de cem anos.

Nos estudos literários, podem-se observar correntes cujo interesse está no autor; outras, no leitor e outras ainda, no texto. Antes de tecer reflexões sobre o texto, gostaria de fazer algumas considerações sobre o autor. No próximo post, tratarei do leitor e do texto.

A palavra autor provém do latim auctor, que significa “o que produz”, “o que gera”, “o que faz nascer”. Normalmente, estabelece-se uma relação de identificação entre autor e texto: Dom Casmurro com Machado de Assis; Grande sertão: veredas com Guimarães Rosa; A divina comédia com Dante; Hamlet com Shakespeare. Entretanto, como se sabe, há textos que chegaram a nós sem identificação de autoria, como Tristão e Isolda, Lazarillo de Tormes, Arte de furtar, A epopeia de Gilgamesh, A canção dos Nibelungos, as histórias narradas no Livro das mil e uma noites, e diversos contos maravilhosos e folclóricos. Os poemas épicos gregos Ilíada e Odisseia são atribuídos a Homero, mas não é certo que ele tenha sido o autor desses textos.

Mesmo quando não restam dúvidas sobre quem escreveu determinada obra, a questão da autoria ainda assim é discutível. Dois franceses, Roland Barthes e Michel Foucault, em dois textos que se tornaram célebres, A morte do autor e O que é um autor?, respectivamente, mostram-nos que o texto é um mosaico de citações, em que se podem observar várias vozes que falam nele. Segundo Foucault, o autor exerce uma função, qual seja, a de organizar os discursos num texto. De fato, os textos que circulam socialmente remetem a outros, ou seja, todo texto repousa num já dito, ou, no dizer de Barthes, “[…] um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação […]”. A isso se dá o nome de intertextualidade. Barthes assinala ainda que é o leitor e não o autor que dá unidade ao texto, porque “[…] o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita […]”.

Tome o texto deste artigo que você está lendo agora. Há um nome que identifica seu autor (Ernani Terra), mas você deve ter notado que o tempo todo o “autor” está se referindo ao que outros autores disseram sobre o mesmo tema (no parágrafo anterior estávamos falando de Barthes e Foucault), e o que consta deste texto poderá aparecer no futuro em textos de outros “autores”, em que o “autor” do trabalho estabelecerá links com este texto, por meio de citações diretas, paráfrases, notas de rodapé etc. Em outras palavras, os textos estão indexados a outros, permitindo até mesmo uma leitura hipertextual. A referência que fiz ao texto A morte do autor, de Barthes, pode fazê-lo parar de ler este texto, procurar o texto de Barthes para lê-lo e, em seguida, retornar a este texto.

Numa narrativa ficcional, aquele que fala no texto, o narrador, não é seu autor, ou seja, o indivíduo empírico, com CPF e RG, mas o autor textual, isto é, constituído no e pelo texto. Os estudos da enunciação mostram que as marcas de pessoa presentes do texto não remetem a seu autor, mas ao enunciador, que não coincide necessariamente com a figura empírica do autor.

No tocante à produção literária, tecnologias digitais (hipertexto, multimídia) são ainda pouco exploradas. Na verdade, na maioria das vezes, ocorre apenas a transposição do livro de papel para o formato digital sem alteração de conteúdo e opções de navegabilidade. O texto impresso é simplesmente digitalizado para ser lido num e-reader ou na tela de um computador; portanto, não há mudanças em relação à autoria: o autor do texto impresso é o mesmo da versão digital. Não se pode desconsiderar, no entanto, que num futuro tenhamos produções literárias que façam uso de hipertexto, associado a multimídias. Com elas, a questão da autoria tornar-se-á problemática, porque a dicotomia autor/leitor tenderá a atenuar-se: quem lê poderá interferir colaborativamente no texto, sendo, portanto, também seu autor.

Por ora, paro por aqui e deixo os comentários sobre leitor e texto para o próximo artigo. Essas breves reflexões estão desenvolvidas no livro A produção literária e a formação do leitor em tempos de tecnologia digital, que publiquei pela Editora InterSaberes.

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