Mudanças tecnológicas e plasticidade dos gêneros

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Introdução

Já tratei neste espaço, em alguns artigos, sobre noção de texto. Como introdução a esse assunto, remeto o leitor para o post Reflexões sobre a noção de texto I, que o remeterá a outros artigos sobre o tema.

Minha ideia é tratar também do hipertexto, destacando a diferença entre texto e hipertexto. Para tanto, a título de introdução ao assunto, sinto-me obrigado a falar, mesmo que resumidamente, de mudanças tecnológicas e plasticidade dos gêneros textuais. No próximo post, tratarei especificamente do hipertexto, destacando suas características.

Tudo muda

Os versos a seguir foram escritos por Camões, poeta português, que viveu no século XVI.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

No século XX, uma canção de muito sucesso, composta por Lulu Santos e Nelson Motta, chamada Como uma onda, dizia em seus versos iniciais que: “Nada do que foi será / De novo do jeito que já foi um dia / Tudo muda…”.

Pode-se estranhar que referências a textos antigos sejam usadas em um texto em que se pretende falar de novas tecnologias, mas a razão é simples. A referência a esses dois textos, separados por quatro séculos, apresenta uma ideia comum: tudo muda. Essa ideia de mudança contínua remonta ao filósofo grego Heráclito, que afirmava que tudo flui. Com as práticas de leitura e escrita não é diferente. Hoje, o comum é que se faça a leitura silenciosa; a menos em casos em que se lê para um auditório. No entanto, essa prática de leitura é relativamente nova, se pensada em termos da história da leitura, uns cinco mil anos.

Se hoje a leitura de textos manuscritos e impressos pode ser feita sem maiores dificuldades, é porque entre as palavras há espaços em branco e sinais de pontuação que orientam a leitura, pois houve época em que, na escrita, as palavras eram emendadas umas às outras.

Tente ler o trecho abaixo e veja como a leitura se torna mais difícil sem a presença de sinais de pontuação e de espaços em entre as palavras.

Sehojealeituradetextosmanuscritoseimpressospodeserfeitasemmaioresdificuldadeséporqueentreaspalavrasháespaçosembrancoesinaisdepontuaçãoqueorientamaleiturapoishouveépocaemquena escritaaspalavraseramemendadasumasàsoutras

Os sinais de pontuação só começaram a ser utilizados no século IV, uma invenção relativamente recente, se levarmos em conta a história da escrita. Sua função, inicialmente, era diferente da de hoje. O ponto, por exemplo, era usado para separar uma palavra da outra; pois, como afirmei, não havia o espaço em branco entre as palavras, o que surge apenas no século VII.

Separar as palavras por espaços em branco e usar sinais de pontuação pode ser considerado uma revolução tecnológica no sentido de facilitar muito a vida dos leitores, que passaram a despender menos esforço interpretativo durante a leitura.

Hoje, substituímos os recados escritos em papel por mensagens no WhatsApp ou Telegram; as cartas, por e-mails e pelo Messenger; o diário pessoal, pelo blog; a aula só falada, por apresentações multimídia. Essa revolução tecnológica pode assustar em princípio porque ela é muito rápida.

Não faz muito tempo, usavam-se transparências em retroprojetores para ilustrar uma exposição oral; informações eram guardadas em disquetes e CDs cuja capacidade de armazenamento era ridícula para os padrões atuais. O WhatsApp, que foi lançado há apenas 12 anos, possui 2 bilhões de usuários mensais no mundo, sendo 120 milhões só n o Brasil. Há alguns anos, o acesso à internet era feito exclusivamente por computadores; hoje as pessoas se conectam à rede por meio de smartphones, aparelhos que substituem os celulares com inúmeras vantagens, já que são telefones inteligentes, dotados de sistema operacional (iOS, Android), que faz deles verdadeiros computadores portáteis.

As mudanças nas práticas de leitura e escrita não acompanham o mesmo ritmo das transformações tecnológicas. Isso significa que continuamos a ler e a escrever praticamente da mesma forma que fazíamos antes da internet. Com todos os avanços tecnológicos, ainda é por meio de textos que nos comunicamos, portanto é preciso não se deixar iludir achando que, com as novas tecnologias, não precisamos mais nos preocupar com a forma como redigimos. As mudanças se fazem sentir mais nos suportes do que nos textos. Não é porque uma piada foi enviada por WhatsApp que ela deixou de ser uma piada. Da mesma forma, o fato de um trabalho de conclusão de curso ser produzido em um computador e enviado ao professor por e-mail não significa que ele não deva observar as convenções relativas ao gênero, devendo ser redigido com clareza e na variedade culta da língua.


Este assunto, entre outros, é tratado em meu livro Práticas de leitura e escrita, publicado pela Editora Saraiva. Para mais informações, clique no link abaixo.

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