Ainda mais uma vez a crase

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No blogue, já escrevi três posts falando sobre a crase: Uso do acento grave, Ainda a crase e Mais uma vez a crase (para lê-los, basta clicar nos links). Achei que o assunto estivesse devidamente esclarecido e encerrado de vez. Para minha surpresa, vejo que o tema continua ainda a deixar algumas pessoas perdidas como se estivessem num labirinto do qual não encontram a saída. Chego a receber comentários de pessoas se posicionando a favor da abolição da crase. A confusão é de tal ordem que me sinto obrigado a escrever novo artigo, para tentar pôr fim de vez a confusão que se faz. Espero que consiga.

Em primeiro lugar, vou tentar desfazer a confusão que – creio eu – seja a origem de tudo: crase é uma coisa; acento gráfico, no caso o acento grave, é outra. Chamar o acento grave de crase é algo como chamar urubu de meu louro.

Crase é palavra de origem grega: krâsis,eōs cujo sentido é ação de misturar, mistura de elementos que se combinam num todo; fusão. Em português, ocorre fusão de fonemas idênticos e a isso damos o nome de crase. Crase é, pois, um fenômeno fonético. Sons idênticos consecutivos tendem a se fundir. Esse fenômeno pode ser observado na evolução do português. A palavra dor proveio do latim ‘dolorem’, passando pelas seguintes transformações: dolorem > dolore > dolor > door > dor. Observe que a forma anterior a dor era door. O que aconteceu? Dois fonemas vocálicos idênticos e consecutivos se misturaram, se fundiram num só, ou seja, ocorreu a crase.

Esse fenômeno não está restrito à evolução da língua, podendo ser observado na língua como é usada hoje. As pessoas dizem /Vou ao cinema/, mas dizem /Vou a praia/ (estou considerando apenas a pronúncia, deixando de lado a grafia). Estou afirmando que ninguém diz /Vou a a praia/, pronunciando os dois aa separadamente. Todo falante junta as duas vogais idênticas e sucessivas numa só, ou seja, fazem a crase (a fusão), mesmo que não saibam o que é isso. Não é preciso ir à escola para saber que se fala /ir a escola/ e não /ir a a escola/. Em suma: os falantes intuitivamente fazem a crase. Não tem como abolir isso. Não tem como errar na hora de fazer a crase.

No português atual, a crase só acontece com o fonema vocálico a. Em outras épocas, aconteceu com outros fonemas vocálicos, como no exemplo door > dor. Mas insisto: a crase (fusão) é um fenômeno fonético, ou seja, está no domínio da língua falada.

Na língua escrita, usamos símbolos gráficos para representar os fonemas (os sons). O fonema /a/ é representado na escrita pela letra a. O fonema nasal / ã / é representado pela letra a, à qual se acrescenta um sinal gráfico, o til ( ~) para indicar que a vogal é nasal (manhã e não manha). O som nasal da vogal também pode ser indicado pelas letras m e n em final de sílaba. Mas isso não interessa agora.

Há em português três acentos: o agudo, o circunflexo e o grave. O acento agudo e o circunflexo são colocados sobre as vogais para indicar a intensidade (tônica) e o timbre (aberto ou fechado). O emprego desses sinais é determinado por algumas regras estabelecidas pelo sistema ortográfico vigente.

O acento grave, embora tenha esse nome, não é propriamente um acento, porque nem marca a intensidade (átona ou tônica), nem o timbre (aberto ou fechado) da vogal a. Ele apenas e tão somente está sobre a vogal a para indicar que ocorreu a fusão de dois aa. Isso quer dizer que o acento grave é algo da língua escrita que indica um fenômeno da língua falada, a crase. Crase é uma coisa, acento grave é outra. Não há o que confundir. Então, por que as pessoas confundem?

Confundem porque, lamentavelmente, alguns professores, ao tentar explicar a crase, usam a expressão acento grave como sinônimo de crase (misturam o Zé Germano com o gênero humano). Não é raro ouvir professor dizer: “Coloque a crase no a”, “Se você não puser a crase no a, fica errado”; “Faltou a crase em cima do a”. Ninguém coloca crase no a, ninguém põe crase no a, não falta crase em cima do a. Crase é fusão. Pode-se colocar acento no a, mas crase nunca.

Alguém poderia dizer: nesse caso, o professor está fazendo uso de uma metonímia, ou seja, está usando o sinal (acento grave) no lugar da coisa significada (a crase). Isso é verdade. Mas então que se explique ao aluno que se está usando uma metonímia, ou seja, que se substitui uma palavra por outra por relação de contiguidade entre ambas. Acho que explicar isso fica mais difícil do que explicar que acento é uma coisa e crase é outra. E, cá entre nós, não é muito didático explicar um fenômeno gramatical por meio de linguagem figurada. A gente já viu e continua vendo a confusão que isso causa. Então é melhor ser objetivo e rigoroso com os conceitos.

Pelo exposto, fica claro que é sem propósito discursos que pedem para “revogar a crase”, “abolir a crase”. Se quiserem fazer uma reforma ortográfica para suprimir o acento indicativo da crase, é uma outra história.

Por último, mas não menos importante, destaco que, em alguns casos, se emprega o acento grave, embora não haja a fusão de dois aa. É o que ocorre em algumas expressões adverbiais formadas com palavras femininas como à noite, à vista, à vontade, à espera, etc. Quando se escreve “Comprei o celular à vista para ter direito ao desconto”, na expressão à vista, emprega-se o acento grave, embora não haja crase. Nesse à vista, tem-se um único a (a preposição). Confira: Comprei o celular a prazo porque estava sem muito dinheiro.


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