O texto narrativo

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Introdução

Narrar é contar alguma coisa (em geral, algo que já ocorreu), não importando se efetivamente ocorreu, como numa notícia de jornal, ou se é fruto da imaginação humana, como nas narrativas ficcionais, de que são exemplos os gêneros conto, romance, novela, lenda, fábula, etc. Nesse caso, a narrativa, embora não verdadeira, deve ser verossímil, isto é, parecer verdadeira.

Aquilo que é narrado é chamado de fato. Quando o fato ocorreu sem intervenção de um sujeito, temos um evento. Havendo intervenção de um sujeito, temos uma ação. Os sujeitos de uma ação serão sempre seres antropomorfizados, ou seja, humanos ou seres que encarnam valores humanos, como nas fábulas, por exemplo. Como exemplos de narrativa de eventos, podemos citar notícias que dão conta de um furacão que destruiu casas numa cidade, ou de inundações que causaram mortes.

O texto narrativo

Um texto narrativo apresenta uma sequência de fatos situados no tempo que se encadeiam logicamente por relações de causa e efeito, ou seja, entre os fatos narrados há uma implicação que vai conferir coerência à narrativa. Todo texto narrativo apresenta transformações, isto é, mudanças de estado. As narrativas são também marcadas pela temporalidade, isto é, há sempre um antes e um depois.

Quanto à temporalidade, é preciso ressaltar que os fatos podem ser narrados na ordem em que sucederam, ou não. Nos textos narrativos ficcionais, é comum que se subverta a ordem cronológica dos fatos, havendo recuos para fatos anteriores ao que está sendo narrador, ou antecipações de fatos que ainda vão ocorrer. Veja a propósito o primeiro parágrafo do romance Canção de Ninar, de Leïla Slimani.

O bebê está morto. Bastaram alguns segundos. O médico assegurou que ele não tinha sofrido. Estenderam-no em uma capa cinza e fecharam o zíper sobre o corpo desarticulado que boiava em meio aos brinquedos. A menina, por sua vez, ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu como uma fera. Encontraram marcas de luta, pedaços de pele sob as unhas molinhas. Na ambulância que a transportava ao hospital ela estava agitada, tomada por convulsões. Com os olhos esbugalhados, parecia procurar o ar. Sua garganta tinha batido com violência contra a cômoda azul. (SLIMANI, 2018, p. 9)

O romance narra a história de uma babá que mata duas crianças de quem cuidava. A narração, no entanto, não segue a ordem cronológica dos fatos: a contratação da babá pelo casal com dois filhos, a relação que a babá desenvolveu com as crianças, a confiança que os pais passaram a depositar na babá, os transtornos psicológicos que ela passou a apresentar e, por fim, o assassinato das crianças que deveria proteger.

Ao iniciar o romance, o leitor já toma contato com o que seria o final da história. A partir daí, o narrador passa a contar os fatos que levaram a personagem a praticar aquele ato.

Fábula e enredo

Se, numa narrativa de ficção, é comum a subversão da ordem temporal dos fatos, nas narrativas não ficcionais o comum é que se narre na ordem cronológica dos acontecimentos. Podemos, com base nisso, fazer a distinção entre fábula e enredo.

Não estamos empregando a palavra fábula para designar um gênero literário narrativo que tem por personagens animais e que se caracteriza por transmitir um preceito de ordem moral. Fábula aqui designa a história narrada, aquilo que é contado no texto. Enredo diz respeito ao modo como a história é contada, isto é, como ela é organizada pelo narrador. Em outras palavras, o enredo é o modo como o leitor toma conhecimento da história narrada (a fábula).

No exemplo que apresentei, a fábula é a seguinte: uma babá foi contratada por um casal de franceses para cuidar de seus dois filhos pequenos. Em sua tarefa, ela se mostra extremamente carinhosa e cuidadosa com as crianças e, com isso, ganha irrestrita confiança do casal. Com o passar do tempo, a babá começa a apresentar problemas psicológicos que a levam, sem razão aparente, a matar as duas crianças de quem cuidava.

No entanto, não é dessa forma que o narrador apresenta os fatos ao leitor. A história não é contada linearmente, do passado para o presente. O narrador intencionalmente altera a sucessão dos acontecimentos, optando por apresentar os fatos não na ordem em que aconteceram. Essa forma de organizar os acontecimentos é o que se denomina enredo.

Elementos da narrativa

Um texto narrativo apresenta os seguintes elementos:

  1. Narrador: aquele que narra os acontecimentos. Pode não fazer parte do fato narrado, ou seja, narra da perspectiva de alguém que está fora dos acontecimentos do qual é apenas um observador. Nesse tipo de narração, não há as marcas linguísticas do narrador no texto, é como a história narrasse a si mesma. São narrativas em 3ª pessoa e que produzem efeitos de sentido de objetividade.

O narrador pode também ser personagem (principal ou secundária) da história que narra. Por participar dos fatos, tem uma visão de dentro dos acontecimentos, limitando-se a narrar o que pode ver. São as narrativas em 1ª pessoa; nelas, as marcas linguísticas do narrador estarão presentes no enunciado, explicitadas por pronomes e verbos na 1ª pessoa e adjetivos avaliativos. Esse tipo de narração produz efeitos de sentido de subjetividade.

  • Fato: para que haja narração é preciso que algo seja contado. O que se conta é um fato, ações que se referem a um sujeito, ou um evento. O fato narrado é a resposta à seguinte pergunta: o quê?.
  • Personagem: excetuando as narrativas de eventos, o conteúdo de uma narrativa sempre faz referência a um sujeito com características humanas, mesmo que venha figurativizado em um animal ou um ser alienígena, lembrando que esse sujeito pode ter existência real, como nas notícias de jornal, ou ficcional. A personagem é a resposta à seguinte pergunta: Quem?.

Evidentemente, uma narrativa pode apresentar mais de uma personagem. Dá-se o nome de protagonista à personagem em torno da qual a narrativa se desenrola. No exemplo citado, a babá é a protagonista; os pais e as crianças são personagens secundárias. Veja que o protagonista de uma narrativa nem sempre representa valores do bem. No exemplo, a protagonista é uma assassina de crianças.

  • Tempo: como afirmei, toda narrativa se desenvolve no tempo. É preciso distinguir, no entanto, o tempo dos acontecimentos narrados e o tempo de duração dos acontecimentos

O tempo dos acontecimentos narrados tem por marco a enunciação e pode ser: presente, se é concomitante à enunciação. No caso de não concomitância, será passado, se anterior ao momento da enunciação, ou futuro, se posterior. O mais comum é encontrarmos narrativas de fatos anteriores à enunciação.

Esse tempo pode ser preciso ou vago. O conto Plebiscito, de Artur de Azevedo, deixa preciso já na primeira linha o tempo do acontecimento da matéria narrada: “A cena passa-se em 1890”. Em outros textos, o tempo é apresentando de modo vago: “Era uma vez”, “Cera vez”, “Outro dia”, etc. Em outros casos, não há referência alguma ao tempo, a não ser aquela dada pelo verbo: “Carla ouviu o carro chegando antes de ele passar pela pequena elevação na entrada que por ali chamavam de colina” (MUNRO, 2017, p. 9).  Observe que se trata de narração de um fato passado. Mas que passado? Quando o fato sucedeu exatamente? Ontem? Na semana passada? No ano passado? Em 1989? Impossível localizar em que momento do passado o fato se deu.

O tempo de duração dos acontecimentos é variável. Pode-se tanto narrar um fato que durou algumas horas ou um que durou um século. Numa notícia de jornal que narre um assalto a caixa eletrônico, o tempo de duração do acontecimento é curto; o fato narrado aconteceu num intervalo de tempo que durou minutos. Numa narrativa de um episódio histórico como a Revolução Francesa, o tempo de duração dos acontecimentos será extenso.

O tempo dos acontecimentos narrados é a resposta à seguinte pergunta: Quando?. A pergunta que indica o tempo de duração dos acontecimentos é: Quanto tempo?.

Podem ainda aparecer em textos narrativos:

  • Espaço: O espaço é o local em que desenrolam-se os fatos. Se o tempo está sempre explicitado na narrativa, o espaço pode não aparecer. Pode-se narrar um fato sem se dizer o local onde ocorreu. Se nas narrativas ficcionais, pode-se abrir mão da indicação do lugar em que ocorreram os fatos (veja, por exemplo, as fábulas e lendas), nas narrativas ficcionais a explicitação do lugar cria efeitos de sentido de verdade, na medida em que ancora o fato narrado a elementos da realidade objetiva. O espaço é a resposta à pergunta: Onde?.
  • Causa: indica o motivo, isto é, o que provocou o acontecimento. Lembre-se de que na narração os fatos se articulam por relações lógicas de causa e consequência. Se a causa é o que provoca, a consequência o resultado que, por sua vez, pode vir a ser causa de outro fato. Numa pequena narrativa que conte que alguém que conduzia um veículo e falava ao celular atropelou um pedestre, que morreu dois dias depois em decorrência do acidente. O motorista foi processado por crime de homicídio e foi condenado a uma pena de reclusão, temos um encadeamento lógico de fatos por causa e consequência. Os fatos são os seguintes:

Fato 1: falar ao celular enquanto dirigia;

Fato 2: atropelar o pedestre;

Fato 3: a morte do pedestre;

Fato 4: o motorista ser processado;

Fato 5: o motorista ser condenado.  

O fato 1 é causa do fato 2;

o fato 2 é consequência do fato 1 e causa do fato 3;

o fato 3 é consequência do fato 2 e causa do fato 4;

o fato 4 é consequência do fato 3 e causa 5;

o fato 5 é consequência do fato 4 e poderia ser causa de um outro fato se a narrativa prosseguisse.

A causa é a resposta à seguinte pergunta: Por quê?.

  • Modo:  indica como o fato ocorreu. O modo é a resposta à seguinte pergunta: Como?.

A sequência narrativa prototípica parte de uma situação inicial de equilíbrio que é rompida por algum motivo ou por alguém, modificando o status do sujeito da ação, o que gera um conflito. A essa segunda fase dá-se o nome de complicação. Nela, há uma sequência de ações encadeadas que levam a narrativa a um ponto de maior intensidade do conflito, denominado clímax, o ponto de maior tensão narrativa. Com a resolução do conflito, a narrativa passa a ter um caráter descendente e se restabelece o equilíbrio, que corresponde à situação final da sequência narrativa. Em alguns gêneros narrativos, a situação final pode vir seguida de uma moralidade, que serve de arremate à narração. Isso pode ser observado nas fábulas, que, após a situação final, costumam apresentar um preceito de ordem moral.

A seguir, apresentamos o esquema da sequência narrativa.

situação inicial complicação ações resolução   situação final

 (equilíbrio)                (conflito)         (clímax)                  (equilíbrio)    

Esses elementos da sequência narrativa se articulam em pares. Se há uma situação inicial, haverá uma situação final; se há uma complicação terá de haver uma resolução. Quanto às ações, seu par corresponderia a uma sanção, ou seja, a uma avaliação de natureza moral, que pode estar explícita ou implícita. Em fábulas e contos de fada é comum a avaliação vir explicitada pela moral (nas fábulas) ou expressões do tipo E viveram felizes para sempre.

Gramaticalmente, nos textos narrativos predominam verbos que exprimem ações que se referem a um sujeito antropomórfico. Os verbos exprimem ainda a temporalidade (passado, presente, futuro) e a perspectiva do narrador, ou seja, narração em 1ª ou 3ª pessoa. Pode haver também expressões de natureza adverbial que servem para situar os fatos num determinado tempo (no início do século, durante os festejos de carnaval, certo dia, etc.), indicar a passagem do tempo (na semana seguinte, depois disso, antes de sair, etc.). Essas expressões servem de marco temporal para a organização temporal da narrativa, ou seja, os fatos narrados ocorrem num tempo concomitante, anterior ou posterior a um determinado marco temporal.  Por apresentar verbos de ação, sujeitos e lugares, designados por substantivos concretos, os textos narrativos são predominantemente figurativos.

A seguir um exemplo de sequência narrativa ficcional.

Antes, não existia nada. Nada além daquela fina poeira cinza que caía lentamente sobre seus fios brancos e lisos. Seus ouvidos zuniam como se um inseto houvesse se apoderado de seu corpo e nunca mais pretendesse deixar sua hospedeira. Era o único som além do ranger de madeira a cada nova investida de uma labareda jovem e indomável.

Ali, parada, anestesiada, com seus tênis verdes e roídos tentou lembrar se havia tirado as poucas peças de roupa do varal e a ideia de ficarem com aquele odor mórbido a deixou perturbada. (PACHECO, 2015, p. 43)

Embora haja adjetivos que caracterizam a personagem, predomina a narração. O propósito da autora não é fazer um retrato da personagem, mas de relatar fatos que se referem a ela. Não há no enunciado nenhuma marca linguística do narrador. Trata-se de uma narração em 3ª pessoa em que o narrador é dotado de onisciência, isto é, sabe tudo a respeito do que narra, podendo inclusive transmitir ao leitor os pensamentos da personagem. Observe a passagem que ele afirma “tentou lembrar se havia tirado as poucas peças de roupa do varal”. É preciso abrir um parêntese para deixar claro que o narrador não deve ser confundido com o autor do texto, no caso, Jessyca Pacheco. O narrador é uma instância a quem o enunciador deu voz e que tem o dever e o poder narrar em seu lugar.

Quanto ao tempo, trata-se de narração de fato ocorrido num tempo passado vago e indefinido. A única referência ao espaço é dada pelo advérbio ali, que indica lugar fora da cena da enunciação. 

Apresento a seguir um exemplo de sequência narrativa não ficcional.

Por mais longe que remontem minhas lembranças, sempre me vejo cercado de livros. Como meus pais eram ambos bibliotecários, havia sempre muitos livros em minha casa. Meu pai e minha mãe viviam às voltas com o planejamento de novas estantes para absorver todos os novos volumes; enquanto isso, os livros se acumulavam nos quartos e corredores, formando pilhas frágeis em meio às quais eu devia me esgueirar. Logo aprendo a ler e comecei a devorar os textos clássicos adaptados para jovens, As mil e uma noites, os contos dos irmãos Grimm e de Andersen, Tom Sawyer, Oliver Twist e Os Miseráveis. Um dia, aos oito anos, li um romance inteiro; devo ter ficado muito orgulhoso com o fato, pois escrevi em meu diário: “Hoje, li Sobre os Joelhos do Meu Avô, livro de 223 páginas, em uma hora e meia!” TODOROV, 2009, p. 15.

O que se acabou de ler é o início do prólogo do livro A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov. Como assinalei, não se trata de texto ficcional, já que o autor narra fatos que realmente sucederam e dos quais ele foi o protagonista. Quando ao gênero, trata-se de memórias ou memorial. Nesse gênero, que muitas vezes se insere no discurso literário, narram-se acontecimentos significativos da vida de uma pessoa. Aos substantivos memórias e memorial, corresponde o adjetivo memorável, isto é, aquilo que é digno de ser lembrado pela memória, portanto algo inesquecível. Esse gênero faz fronteira com a autobiografia. A diferença é que, enquanto a autobiografia, tem um caráter mais objetivo, as memórias são mais subjetivas, na medida em que o autor não pretende fazer um relato de sua vida como um todo, mas apenas de fatos que lhe foram marcantes e que estão vivos na memória.

Como se pode notar, trata-se de uma narrativa em 1ª pessoa, como atestam as formas gramaticais minhas lembranças, me vejo cercado, meus pais, minha casa, eu devia me esgueirar, aprendi a ler e comecei a devorar entre outras. A opção por esse foco narrativo produz efeitos de sentido de subjetividade próprios do gênero.

O tempo dos acontecimentos narrados é anterior à enunciação. Observe o predomínio de verbos do sistema do passado:

Pretérito imperfeito: havia, viviam, acumulavam;

Pretérito perfeito: aprendi, comecei, li, escrevi.

Os primeiros narram fatos passados em andamento, não os tomando como acabados. Os segundos também se referem a fatos anteriores ao momento da enunciação, mas apresenta-os como acabados, concluídos.

Embora seja uma narrativa de fatos de um passado remoto (o narrador fala de sua infância junto aos pais bibliotecários, cercado por livros), há formas verbais no presente do indicativo. A primeira aparece na primeira frase do texto: me vejo.  A outra aparece quase no final do fragmento: devo ter ficado. Como se justifica o uso de formas do presente numa narrativa de fatos passados? A resposta é: porque ele escreve sobre o passado, mas com os olhos do presente, ou seja, o passado é presentificado por meio da memória.

REFERÊNCIAS

MUNRO, Alice. Fugitiva. São Paulo: Mediafashion. Coleção Folha. Mulheres na literatura, v. 25, 2017.

PACHECO, Jessyca. ‘Fragmentos’. In: Matéria derradeira. São Paulo: Córrego, 2015

SLIMANI, Leila. Canção de ninar. São Paulo: Planeta, 2018.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 2a. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019.


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