Persuasão num texto literário

Tempo de leitura: 6 minutos

Em posts anteriores, comentei alguns tipos textuais. Falei do texto expositivo, do narrativo e do descritivo. Oportunamente, tratarei do texto argumentativo, mas desde já adianto que a argumentatividade está presente em textos dos diferentes tipos, pois quem produz o texto quer que o leitor / ouvinte adira a ele. O enunciador não exerce apenas um fazer comunicativo (um fazer-saber), exerce também um fazer persuasivo (um fazer-crer e/ou um fazer-fazer). Neste post, pretendo mostrar como se dá a persuasão em um texto literário, um soneto de Gregório de Matos. Transcrevo a seguir o soneto na íntegra.

A Jesus Cristo Nosso Senhor

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,

Da vossa alta clemência me despido;

Porque quanto mais tenho delinquido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,

A abrandar-nos sobeja um só gemido:

Que a mesma culpa, que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada

Glória tal e prazer tão repentino

Vos deu, como afirmais na sacra história,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,

Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.

(CANDIDO; CASTELLO, 1973, p. 72)

Nesse soneto, o discurso se instaura por meio de uma figura de comunhão, a apóstrofe “Pequei, Senhor…”, pela qual o enunciador procura romper o desnivelamento do plano divino com o terrestre, buscando entrar em comunhão com o divino. Nesse primeiro momento, seu ethos é manifestado: trata-se de um pecador. Esse caráter manifesto do enunciador parece, num primeiro momento, não ser digno de provocar credibilidade. Como então se pode dar a ruptura do desnivelamento, a comunhão com o divino, se o próprio enunciador se mostra por um vício e não por uma virtude? Ocorre que não se trata de um pecador qualquer, mas de um pecador arrependido. Sendo o arrependimento uma virtude que reaproxima o homem de Deus, o enunciador manifesta um caráter positivo: é uma pessoa de virtude que quer voltar à glória de Deus.

Há de início um paradoxo que se instaura: o enunciador apresenta um caráter negativo porque pecou e se afastou de Deus, mas é possuidor de um caráter positivo porque se arrependeu e quer voltar a Deus. Como o arrependimento apaga o pecado, um dos termos do paradoxo desaparece. Não há mais paradoxo algum. O enunciador tem autoridade e caráter para reivindicar junto ao Senhor o perdão.

O desnivelamento entre o espiritual e o temporal é manifestado no poema por meio de figuras que exploram a contradição, a oposição, algumas delas intensificadas por meio de hipérboles:

“Porque quanto mais tenho delinquido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.”

“Se basta a vos irar tanto pecado,

A abrandar-nos sobeja um só gemido:”

“Que a mesma culpa, que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.”

O enunciador também recorre ao recurso do argumento da autoridade. No caso, as próprias palavras do Senhor, ditas em outro intertexto, no qual o orador se projeta (a parábola da ovelha desgarrada), funcionam como recurso persuasivo.

“Se uma ovelha perdida, e já cobrada

Glória tal e prazer tão repentino

Vos deu, como afirmais na sacra história,”

Quebrado o desnivelamento, pode o enunciador, pelo discurso, persuadir o divino para que lhe conceda o perdão e apague sua culpa. 

Eni Orlandi (1996) aponta três modos de organização do discurso: o polêmico, o lúdico e o autoritário. Ressalte-se que essa classificação leva em conta a ideia de discurso dominante, já que há formas híbridas de discurso, em que há sempre a dominância de uma forma sobre outra(s).

Com fundamento no que postula Orlandi, o soneto de Gregório de Matos se enquadra no que essa autora classifica como discurso polêmico na medida em que o enunciador “…procura dominar seu referente, dando-lhe uma direção, indicando perspectivas particularizantes pelas quais se o olha e se o diz, o que resulta numa polissemia controlada…” (Orlandi, 1996).

De fato, o enunciador reconhece o pecado; mas o particulariza, olha-o sob a ótica de que o pecado, se perdoado, causa a glória divina.

Do ponto de vista do raciocínio, o orador se vale de uma raciocínio formal, silogístico.

            A glória de Deus está no perdoar ao pecador.

            Eu sou pecador.

            Logo, Deus tem de me conceder o perdão para manter sua glória.

            Ou em outros termos:

            A bondade divina se manifesta no perdoar ao pecador.

            Sou pecador.

            Logo, para exercer sua bondade, Deus terá de me perdoar.

O caráter persuasivo do poema remete a um dilema: para que exista perdão, é preciso que haja pecado; se não houver pecado, não existe perdão. E como Deus é clemente, é necessário que haja o pecado para que ele possa manifestar sua clemência.

Na busca de um discurso persuasivo, Gregório de Matos se afasta do caráter mais inventivo de certas manifestações literárias. Seu discurso não é lúdico como em outras manifestações poéticas, Drummond, Bandeira e João Cabral, por exemplo. A brincadeira com as palavras, seus sons e significados é deixada de lado em favor da exposição de um raciocínio persuasivo: o lúdico cede lugar ao polêmico.

 Como assinala Mosca (2004), “a função persuasiva, por mais primordial que seja, não é única, pois o discurso não é um acontecimento isolado, na medida em que opõe-se a outros discursos que o precederam ou que lhe sucederão”. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), como a adesão pressupõe consenso, o enunciador deverá recorrer a possíveis objetos de acordo para neles fixar o ponto de partida da sua argumentação.

Em conclusão, pode-se afirmar que no soneto a persuasão não busca a simples concordância do ouvinte/leitor, mas a sua adesão ativa, na medida em que se espera que esse ouvinte/leitor realize uma ação ou se predisponha a realizá-la.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio e CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira I – Das Origens ao Romantismo. 5ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1973.

MOSCA, Lineide do Lago Salvador. Velhas e novas retóricas: convergências e desdobramentos. In: MOSCA, Lineide do Lago Salvador. (org.). Retóricas de Ontem e de Hoje. 3ª ed. São Paulo: Humanitas, 2004. p. 17-54.

ORLANDI, Eni. A linguagem e seu funcionamento – as formas do discurso. 4ª ed. Campinas (SP): Pontes, 1996.

PERELMAN, Chaim & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de argumentação: a nova retórica. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

2 Comentários


  1. Excelente escolha de texto para exemplificar a persuasão. Gregório, em sua lírica religiosa (e para, quem sabe, salvar a alma da satírica ), foi mestre da persuasão.
    Penso a persuasão mais ligada ao emocional, enquanto o convencimento, ao racional.

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    1. Maria Alice, valeu! Este post é uma adaptação de um artigo que escrevi em que comparava a posição do enunciador em dois textos. Nesse poema de Gregório de Matos e em uma sutra do Alcorão. No poema, o enunciador fala de baixo pra cima (o homem se dirige ao Senhor); na sutra é de cima para baixo (é Alá quem fala ao homem). Dá para tirar um monte de conclusões a partir daí. Para pôr no blogue, cortei toda a parte do Alcorão e dei uma simplificada. Abraços.

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